por Gravata (Desafio Caixa Preta)
TEMPO ATUAL, SÃO PAULO
CASA DE PEDRO
Pedro (ao telefone)
- Tudo certo por aí?
Mr. W
- Sim. Ele está a caminho.
Pedro
- Ótimo. Precisamos resolver isso logo.
Mr. W
- Já está resolvido. Estou aqui no barco, ele vem para cá.
Pedro
- Que bom... Ah! Daren e Mariana estão juntos...
Mr. W
- Eu sei. Eu mesmo vi. Foi engraçado, até... Ótimo, né?
Pedro
- Ótimo, ótimo. Deu tudo certo.
Mr. W
- Sempre dá. Depois te ligo, tenho uma enfadonha pescaria pela frente...
Pedro (rindo)
- Seu filho da puta!
* * *
1979, RIO DE JANEIRO
PRAIA DE COPACABANA
Um menino e uma menina se olham na praia, os dois com algo em torno de seis anos de idade. Ele é negro, ela branca. Mas, curiosamente - sobretudo em um lugar como o Brasil e o ano em questão - ele é bem mais rico do que ela.
O flerte acaba rapidamente, pois a praia é tomada por um burburinho. Todos se juntam na beira do mar para ver o que está acontecendo. Ele e ela, que até então se olhavam, são abraçados pelas respectivas mamães.
Quinze minutos depois, tudo é esclarecido: um norte-americano, muito branco e magricela, visivelmente embriagado, estava praticamente se afogando. Um banhista o salvou e tudo ficou por isso mesmo. A praia voltou ao normal.
Coincidentemente, o estrangeiro-quase-afogado era pai do menino negro e rico; e o herói-salvador-da-pátria era pai da menininha branca. Mais uma vez, ambos se olharam, encantadinhos no limite da possibilidade de encanto para crianças daquela idade.
E foi isso.
* * *
2000, SÃO PAULO
ESCOLA DE FOTOGRAFIA
Lá estava Mariana, em mais um desses cursos que ela faz. Primeiro, foi desenho; depois, websesign. E agora, para espanto de muitos conhecidos, fotografia. Como sempre acontece, ela adora as aulas, adora o curso, adora as técnicas aprendidas, mas nunca usará nada disso em seu dia-a-dia.
Ela é viciada nisso, e o vício consiste basicamente em fazê-los, aprender o que se ensina nas aulas, e pronto.
Já estava havia duas semanas no curso, quando um novo aluno chegou. Pelo jeito de andar, Mariana matou logo a charada: é gay. O tempo foi passando, os demais alunos não se aproximavam do tal 'novo colega que é gay', e Mariana naturalmente foi se tornando amiga do inteligente e simpático sujeito.
Foi assim que começou sua amizade com Pedro.
* * *
JANEIRO DE 2007, SÃO PAULO
D-EDGE
Pedro e Mariana estavam dançando feito dois alucinados na pista, quando um homem muito bonito e todo fortinho se aproximou, e em pouco tempo seduziu Pedro.
Os dois ficaram juntos naquela noite, e em outras, e mais outras tantas; o rolinho se tornou namoro e logo passaram a morar juntos. Ademir e Pedro sempre pareceram ter nascido um para o outro.
* * *
TEMPO ATUAL, IBIZA
BARCO DE MR. W
Gustavo chega de helicóptero e é levado ao convés por uma loira linda e muito bronzeada, de topless. Ao chegar, se depara com Mr. W, que usa uma calça branca, sem camisa, havaianas, uma pequena correntinha de ouro e uma boina também branca. E fumando charuto.
Mr. W
- Olá, Gustavo! Sente-se! Temos tanto a conversar, não é?
Gustavo
- Sim, claro... Acho que tudo deu certo.
Mr. W (sorrindo aquele sorriso de Mr. W)
- Mas você não sabe o quanto! Quer um charuto? Quer beber alguma coisa? Ah, nem sei por que pergunto...
Em francês impecável, Mr. W se dirige a alguém que está em outro compartimento do barco, e pede uma garrafa de whisky, dois copos e um balde de gelo.
Gustavo mantém o sorriso e aguarda ansioso o desfecho do plano que arquitetara. Chegou a hora de colher os frutos. Mas seu sorriso é interrompido por uma imagem que ao mesmo tempo o encanta e assusta tremendamente.
Quem traz as bebidas é Vivianne, ainda conversando em francês com Mr. W. Ela veste um roupão, está descalça, totalmente bronzeada, cabelos molhados, pingando pelo barco...
Mr. W
- Presumo que a conheça, e provavelmente pelo nome de Vivianne. Bom, se serve de consolo, o nome ao menos é verdadeiro. Mas, como eu ia dizendo, tudo deu muito certo, Gustavo. Muito certo. Agora, sim, podemos conversar...
Gustavo permanece atônito. Não sabe o que dizer, não consegue dizer nada. Está sentado, segurando seu copo. Mr W prossegue:
Mr. W
- Gustavo, Gustavo... Você não é um sujeito burro. Você é esperto. E também inteligente. Mas não inteligente o bastante para supor que houvesse alguém mais inteligente.
Gustavo
- Olha, com certeza houve algum grande engano...
Mr. W
- Engano nada! Cagada, mesmo. Burrice. E sua. Deixa eu falar, toma seu whisky. A parte boa é agora, pô! Eu falo, você ouve e fica deslumbrado com o plano mirabolante etc etc etc. Odeio gente que não aprecia a delícia dessa cena. Quer um charuto?
Gustavo permanece em silêncio, sem saber se aceita ou recusa, sem saber qualquer coisa. Mr. W continua:
Mr. W
- Você armou um bom plano. Medíocre em alguns aspectos, ousado em outros, mas não deixa de ser um planinho bom. Vamos lá: ganha a simpatia de Dina, pega uma grana, coloca Daren numa armadilha para ele vender a empresa inteira por um preço baixíssimo e depois recebe o valor por fora - afinal, você entregou a mim toda a lista de fornecedores e compradores.
Gustavo em silêncio.
Mr. W
- Confesso que foi divertido comprar as três empresas. Mas não paguei um valor abaixo do mercado. Paguei muito acima, até. Ah, com um detalhe: elas não estão no meu nome. Continuam no nome de Daren.
Gustavo (praticamente pulando da cadeira)
- Como assim???
Mr. W
- Por favor, sem exaltação. Sente-se, Gustavo. A essa altura, você já deve ter percebido que esses arroubos seriam um péssimo negócio. Senta aí, beba e ouça. Ok?
Gustavo então se senta, assustado e visivelmente nervoso.
Mr. W
- Seu plano tinha alguns buracos. O primeiro deles é um tanto óbvio: você não me procurou, mas sim eu que te procurei. Um bom estrategista está sempre no comando, mas você rapidamente se deixou comandar. Enfim, quem nasceu pra lagartixa, nunca chega a jacaré.
Gustavo quieto.
Mr. W
- Eu sempre soube que o Daren havia se associado a um escroque, mas não imaginava que seria desse nível. Assim que me chegou a notícia de que você estava pensando na venda/golpe, eu "caí do céu", me oferecendo como comprador. O resto, bem sabemos, foi nossa negociação. Compro barato, passo a você uma grana, você foge e blábláblá.
Gustavo quieto.
Mr. W
- Escuta... Você não achou estranho a Vivianne neste barco?
Gustavo
- É claro que achei! Não estou entendendo nada...
Mr. W
- Obrigado por dar a deixa. Eu gosto de interlocutores mais ativos, Gustavo. Sem arroubos, sem chiliques, mas pelo menos um tanto curiosos. Agora vamos falar da Vivianne.
Gustavo quieto.
Mr. W
- Tenho uma certa facilidade para obter informações, como você já deve ter notado, de modo que não foi muito difícil descobrir que Dina procurava uma mulher para seduzir Daren. Então, infiltrei Vivianne. Peço desculpas por interferir até mesmo nesse plano paralelo, mas confesso que não gosto de ver nada dar errado. Tenho que cuidar de todos os detalhes.
Gustavo quieto.
Mr. W
- Logo que Vivianne ameaçou abrir a boca, você se antecipou e mostrou algum traço de caráter. Afinal, seria bom ter a confiança de Daren, já que você fugiria com o dinheiro das empresas, não é mesmo?
Gustavo engole em seco (mesmo com o copo de whisky na mão)
Mr. W
- Você não acha que falta algo nessa história?
Gustavo
- Não sei o que dizer. Eu não vou arrumar briga, não quero morrer, eu queria receber a minha parte e pronto.
Mr. W (dando uma espécie de "bronca", mas com muito cinismo)
- Gustavo! Gustavo! Não disfarça, Gustavo! Não está faltando nada?
Gustavo
- Acho que você já falou tudo. Não preciso ouvir de novo a história.
Mr. W
- Ademir, Gustavo! Ademir! Foi como seu plano começou! Seu plano começou com o Ademir! Você colocou o cara para vigiar o Pedro, porque o Pedro era próximo de Mariana e você - como amigo de Daren - sabia da importância da moça. Ela contaria as conversas com o Daren para o Pedro, Pedro contaria para Ademir, e este último contaria para você.. Como eu disse, você não é burro. Mas também não é o Einstein.
Gustavo volta a ficar quieto.
Mr. W
- Porque o Pedro, olha que curioso, trabalha para mim há pelo menos 20 anos. Eu o aproximei de Mariana. E ele já sabia das intenções do Ademir antes mesmo da primeira abordagem na boate.
Gustavo intensifica mais o já desagradável semblante de surpresa.
Mr. W
- Confesso que não teria nada contra seu planinho. Não mesmo. O problema é que ele tornaria a vida da Mariana mais difícil. E foi por isso, somente por isso, que resolvi meter meu bedelho.
Gustavo
- Mariana? O que ela tem com isso?
Mr. W
- Você não olha pra frente, Gustavo. Você olha dois, três passos adiante, mas não vê a estrada toda - gostou da metáfora? Mas, enfim... Você não vê o tabuleiro inteiro.
Gustavo
- Que tabuleiro? A Mariana não tem nada com isso!
Mr. W
- Tem tudo com isso! Ela e Daren se amam. Se você depena o Daren, isso complica para a Mariana. E nada pode complicar para a Mariana.
Gustavo
- E você é o anjo-da-guarda? O Senhor Bondade?
Mr. W
- Algo assim. Eu devo a ela, e já tentei pagar de formas mais diretas. Ela é toda orgulhosinha. Então sempre me empenhei em colocar pessoas em sua vida para garantir que tudo sempre desse certo. Claro, ela nunca poderia saber disso.
Gustavo
- E onde entra o Daren nisso?
Mr. W
- Ele continua dono das empresas, o repasse financeiro foi feito mesmo assim.
Gustavo
- Você teve prejuízo financeiro para ajudar o Daren que, na sua cabeça, será o marido da Mariana?
Mr. W
- Não, não... Eu tive lucro. Quando fiz a compra, eu operei em dois mercados, comprando ações de alguns fornecedores na véspera e vendendo dois dias depois. Ganhei o bastante para comprar dez vezes aquelas três empresas. Não, Gustavo, não sou um bom samaritano e não deixei Daren mais rico porque sou um bocó. Eu ganhei muito dinheiro com isso.
Gustavo
- E a minha parte?
Mr. W
- Sem anedotas a essa altura, ok? Deixa eu continuar... O Sr. Takahishi, que por sinal você conhece, a essa altura deve estar conversando com Daren, e falará a respeito do que houve. Ao final da conversa, daquele jeito discreto que só mesmo o Taka é capaz, dirá que seria de bom alvitre que o dinheiro pago pelas empresas fosse empregado para o conforto de Mariana.
Gustavo
- Porque você não deu o dinheiro para ela?
Mr. W
- Porque ela não aceita! Você não conhece as pessoas, Gustavo. Você conhece, e não tão bem, apenas a si próprio. Não é todo mundo que se deixa manipular. Às vezes, é preciso mexer com todo o universo para atingir uma única pessoa, pois muitas vezes esse alguém não permite ajuda alguma. É o caso da Mariana.
Gustavo
- E por que você a ajuda?
Mr. W
- Coisas de família. Antes de falecer, meu pai disse que a única dívida que não deixou paga, em toda sua vida, foi aquela do homem que o salvou de um afogamento. Eu lembro até hoje desse dia, e empenhei alguns esforços para descobrir tudo que houve. Era o pai de Mariana, que já havia falecido quando finalmente encontrei a família. Desde então, além de navegar, jogar golfe e cair na esbórnia, eu tenho feito muito por aquela mulher.
Gustavo
- Ela vai descobrir tudo, não acha?
Mr. W
- Claro que não! Eu faço do jeito certo, ao contrário de você. Aliás, o que foi aquilo de contratar o amadorzinho passional do Ademir? Ele quase complicou tudo para nós dois - mais para você, é claro. Com sua morte, você se sentiu relativamente aliviado, não é?
Gustavo (tentando parecer calmo, mas ainda totalmente abalado)
- Não vou falar do Ademir... Mas e a Dina?
Mr. W
- Está quebrada. Só vocês ainda acham que aquela mulher tem algum dinheiro. Ela está consumindo o patrimônio da família. Pelos meus cálculos - e é difícil eu errar nisso - ela entra no vermelho em três meses.
Gustavo
- Você não vai me pagar nada? Eu vou ficar na merda nessa história?
Mr. W
- Não. Você sabe o que te acontece. Seja homem e enfrente seu destino. Bom, pelo menos é isso que eles falam naqueles filmes de samurai. Eu sinceramente os acho uma porcaria. Tchau, Gustavo.
Em poucos segundos, Mr. W apanha sua arma, que estava sob a almofada do sofá, e dá apenas um tiro em Gustavo. O disparo o atinge entre os olhos. Vivianne então aparece, com cara entediada.
Vivianne
- Nossa, mas você fala demais!
Mr. W
- É, né? Mas matar não tem a mínima graça. Legal mesmo é ver a cara de bobo do coitado. Agora ele parece um peixe morto, olha só (apontando para Gustavo, que jaz no sofá). Isso é sem graça! Esse discurso foi para matá-lo aos pouquinhos.
Vivianne
- Você é cruelzinho, senhor "dáblio" (ela pronuncia de forma jocosa).
Mr. W
- Sou nada. Sou bonzinho até demais. Pelo menos dou um jeito dessa bondade gerar lucro. Bah! Isso é bobagem... Vamos comer?
Vivianne (apontando para Gustavo)
- O que faremos com ele?
Mr. W
- Se quiser fazer sua oração, fique à vontade. Jajá ele vai pro mar. E eu vou comer, porque estou com uma fome dos diabos. Sugiro que me acompanhe, dona Vivi, pois o cheiro de lagosta que vem da cozinha é dos mais aprazíveis...
Os dois caminham de mãos dadas, deixam para trás Gustavo morto no sofá.
* * *
TEMPO ATUAL, SÃO PAULO
ESCRITÓRIO DE DAREN
Daren finalmente termina a conversa com Takahishi. Ele está, ao mesmo tempo, feliz e cheio de dúvidas. E também um tanto assustado. Mas, acima de tudo, está radiante.
Puto da vida com Gustavo, é verdade, mas presume que o "amigo" não voltará tão cedo a São Paulo.
Numa mesma semana, ele perdeu um grande amigo. Ou melhor, descobriu que o suposto amigo era um calhorda. E também dobrou seu patrimônio.
Ainda por cima, todos os embaraços e obstáculos que o mantinham afastado de Mariana parece que já se foram. Ele só pensa nela. Tudo isso aconteceu, mas é nela que ele pensa.
Seus olhos, sua boca, seu cheiro, seu gosto, sua voz. E é com ela que ele almoçará hoje.
CONTINUA...