28 de set. de 2007

Conversadeira da Sé V




por Alice Salles





Era ele de novo.
Aquele moço.

Tirou o chapéu do mesmo jeito, se abaixou assim como quem pega lenço no chão e já chegou perguntando coisa.


-Sobreviveu à tempestade?


Não sei porque raios eu fiquei meio gaga do nada, mas sei que demorou um pouco pros neurônios funcionarem. Assim que percebi que tava devagar dei uma de desentendida, tossi e respondi logo:

-Ah sim, claro! Foi uma chuvinha de nada.
-De nada? De nada mas deixou tua salinha arrasada pelo que vejo!
-Ah não! Isso foi o Zé!

Dei uma risada amarela e ele me sorriu daquele jeito que me deixou meio zonza,não demorou muito e ele se sentou a minha frente, colocou o chapéu sobre o colo, ajeitou o cabelo e olhou bem fundo nos meus olhos.


-E então? Descobriu como eu faço pra resolver meu problema?
-Ah, não é assim! Vamos conversar melhor...
-Não quero ficar conversando, Hadevina! Quero a cura!

-Mas cura pra que, homem?

-Pra essa dor na minha alma!
-Ah, mas a gente "a" de ver que as coisas não funcionam assim! Você ainda não me contou da sua mãe.

-Minha mãe não tem nada a ver com isso!

-Tem de ter! Todo mundo tem problema com os pais!
-Eu não!
-Ah, então seu problema é seu pai?

-Não!

-Ele abusava de você quando era pequeno? Ai meu Deus...

-Não!

-Eu sei que é difícil, pode se abrir!
-Não é nada disso!
-Aqui você pode falar o que sente...
-Mulher! Eu não tenho problema nenhum com meu pai e nem com a minha mãe!

-Então é algum irmão mais velho que não foi bom procê?
-Não!


Eu via que ele estava ficando impaciente! Comecei a me sentir um pouco culpada porque realmente parecia que o homem era uma pessoa nobre. Nobre, nobre eu não sei ? Nunca conheci gente assim, só ouvi falar disso em filme e geralmente eram aqueles filmes chatos com gente que usa peruca branca e toma vinho em tacinha de brinquedo, sabe? Pois bem, foi aí que percebi que o moço tava estressando. Resolvi mudar a tática.


-Está bem então... Pra te falar a verdade, pensei muito no que você me disse.
-No que eu te disse? Sobre o mundo?

-Sim, sim, isso.
-E no que você pensou?

-Pensei que não posso te ajudar. Meus remédios são pra quem tem probleminha besta e que sofre porque não tem gente que realmente possa se abrir, sabe? Eu não tenho remédio pro mundo. O mundo é muito cheio de gente assim! Imagina se eu resolvo abrir essa barraquinha pro mundo! O que vai acontecer comigo? Eu que não aguento!
-Então o que eu faço?
-Faz o que quiser!
-Não! O que eu faço com a minha falta de paz de espírito?
-Não sei! Porque você não arranja um "róbi"?

-Hadevina!

-É verdade! Ajuda muito a gente a esquecer! O meu é cantar as músicas do Vando!

-Hadevina...
-Verdade!

-Faz assim, você tem que ficar aqui até que horas?
-Ah, não senhor! Não vou pra lugar nenhum com o senhor!
-Não vou te fazer mal algum!

-Não posso, tem o Zé!
-Ele vem junto, oras...

-Não senhor! Olha, o senhor seu moço já está me deixando nervosa. Por favor, vá embora, tenho mais clientes...

-Está bem. Às oito estarei aqui.
-O que!?


Não deu tempo. Ele saiu e bateu a lona e o próximo entrou. Pedi pro rapaz desetentado que havia acabado de entrar esperar um pouquinho e tentei procurar por ele na rua. Nenhum sinal.
Às oito horas lá estava ele na minha "porta".



...CONTINUA...

25 de set. de 2007

Conversadeira da Sé - IV



Por Flavia Melissa



Naquela noite eu dormi mal à beça. Achei que talvez tivesse sido a rabada que comi na janta, mas no fundo no fundo eu sabia que tinha sido aquele homem. Depois que ele foi embora, o mundo caiu literalmente sobre a minha cabeça; a água invadiu a tenda e só deu tempo de pegar minha bolsa e sair correndo dali com o Zé no colo, na direção do orelhão mais próximo, único lugar coberto disponível.

Foi uma tempestade de 5 minutos; depois disso, céu azul. Essa é uma das coisas engraçadas da vida, quando se quer que o tempo passe logo ele se arrasta, quando se quer que ele passe devagar ele voa. Foram os cinco minutos mais longos da minha vida e, quando acabaram, achei que pela minha tenda tivesse passado um furacão: todos os meus potes com as minhas ervas e os meus santinhos jogados no chão. Foi uma trabalheira conseguir organizar tudo aquilo, graças a Deus o moço dos incensos me ajudou a recolher tudo.

Ok, to me estendendo demais. Eu sei, tenho essa mania. Porque mais me auto-intitularia Conversadeira? Falo pelos cotovelos desde pequena, acho que isso é assim um pouco por causa da minha mãe, doida de pedra. Quando eu era pequena eu falava com ela e ela não me respondia, então eu conversava comigo mesma prá passar o tempo. Então eu tenho essa mania de falar à beça, e foi meio falando à beça que comecei a conversar com aquela mulher que se sentou ao meu lado no ônibus na volta para casa.

- O que você acha que precisaria acontecer prá salvar o mundo? – Eu perguntei, e a moça ficou me olhando de um jeito muito estranho. Acho que ela não estava preparada prá minha pergunta, porque ficou de boca aberta alguns segundos e depois me disse:
- Prá salvar o mundo? Precisaria explodir uma bomba atômica e começar tudo de novo.

Bomba atômica não estava dentre as minhas habilidades de Conversadeira da Sé. Não, uma coisa era emplastro, chá e pasta de requeijão vencido misturado a orégano da marca mais barata que eu encontrasse no mercado. Mas bomba atômica? Eu nunca tinha entendido nada de bomba, nem daquelas de chocolate que minha mãe fazia quando se empolgava com cozinha e passava dias e noites em claro cozinhando. Eu tinha que arrumar outra saída, pois o moço tinha sido enfático em afirmar que voltaria na quarta, mesmo horário.

Quando cheguei em casa a Adalgiza, minha vizinha, estava sentada no ponto de ônibus, esperando o marido voltar do trabalho. Adalgiza é meio doida mas é até muito boa pessoa, até que gosto de gente doida então não me importo com as doidices dela. É ciumenta que nem o diabo, logo que me viu descendo do ônibus veio me pedir uma receita que fizesse o marido ser sempre fiel a ela, emendando que não conseguia acreditar que ele dizia a verdade toda vez que ficava fazendo serão no escritório às sextas-feiras. Tadinha da Adalgiza, dei a receita e, como não tinha mais nada que fazer mesmo, engatei um papo contando do novo cliente que aparecera na tenda naquela tarde.

Quando terminei de contar a história ela foi logo dizendo:

- Salvar o mundo? Impossível! Não dá prá salvar o mundo, prá salvar o mundo antes você teria que salvar todas as pessoas do mundo. E tem gente que não tem salvação!

Entrei em casa me sentindo desolada. Realmente, salvar o mundo era uma missão impossível. Na verdade, eu não acreditava que o mundo pudesse ser salvo, a moça do ônibus e Adalgiza também não acreditavam, aparentemente só aquele cara achava que o mundo poderia ter salvação. E se o mundo não acredita que possa ser salvo, como é que eu vou fazer? Como eu disse, é só com fé que a coisa funciona.

Então eu dormi mal à beça. Foi assim que eu comecei falando e me perdi em todos os detalhes sem importância que aconteceram depois que o moço saiu da tenda e caiu o mundo sobre a minha cabeça. Tive uns sonhos esquisitíssimos, com a minha mãe se jogando pela janela, se enforcando, cortando os pulsos, tomando uma overdose de remédios... E o moço aparecia a cada cena e me dizia, com aquele olhar penetrante: “salve o mundo e salvará a si mesma”.

E eu? Será que eu acreditava que o mundo pudesse ser salvo? Pior do que isso: será que eu achava que eu poderia ser salva? Será que eu deveria achar que eu tinha algum motivo para ter que ser salva? Salva do quê, mesmo?

Foi pensando nisso que ouvi aquele barulho novamente, SHLEPT!, na porta da minha tenda. Era quarta-feira, e era o mesmo horário.
continua...

Conversadeira da Sé - III


Por Mercedes Gameiro



Quando tudo começou, eu juro ainda era inocente. Eu queria mesmo ajudar toda aquela gente sem rumo e sem esperança. Nem tudo foram receitas de “dor de barriga para merecedores”. Eu inventei simpatias sim. Tá, foram inventadas. Mas todas elas com intenção de ajudar. O universo está careca de saber que as pessoas acreditam em simpatia, e que tudo o que se faz acreditando dá certo. Eu já salvei pessoas assim. A única coisa necessária é que os envolvidos participem do pseudo-ritual. Assim como um macumbeiro mata uma galinha preta, um católico acende uma vela na igreja, um evangélico joga as mãos para cima e ora, uma bruxa cozinha seus ingredientes numa panela velha de ferro, o doente e a pessoa que quer muito que ele fique bom repetem cuidadosamente o ritual que eu ensino e materializam seu desejo. É assim que acontece desde que o mundo é mundo. Lembra o que Jesus dizia quando fazia um milagre? “ A tua fé te curou”. Ha! Ele ensinou o segredinho…eu só ponho em prática. E isso não faz de mim uma milagreira ou uma trambiqueira. Só um instrumento da fé ou da falta dela. Todo esse povo desesperado, no sentido exato da palavra: des-esperado = sem-esperança. Todos eles, eu e uma folha de papel. Tudo o que é preciso para operar um milagre.

Mas tudo corria como todos os dias. Velhos babões querendo me mostrar uma ferida no pinto, lésbicas desesperadas simulando um problema de mama, pessoas querendo ser tocadas seja onde for, só para ter um minuto de uma mão quente e cuidadosa encostada em sua pele. E eu. Ai ai ai. Eu me presto, eu sei. Mas eles precisam, então na verdade não me custa. Podia ser muito pior. Muito pior.

Então ele entrou pela porta de lona da minha “sala privé” e eu não vi seu rosto. A luz que vinha lá de fora silhuetou seu corpo e ofuscou meus olhos. A figura grande e forte parecia mais uma aparição e eu quase pude ouvir uma música dramática ao fundo, sincada com a entrada triunfal. Depois, o som da lona; SHLEPT! Mais um passo à frente e ele tira o chapéu, curva o corpo como a reverenciar uma rainha, levanta-se devagar olhando dentro dos meus pensamentos. Eu, estarrecida, esperava por uma palavra, um som, um gemido, qualquer coisa que me mostrasse quem era e de onde vinha aquela figura mágica.

- Pois não? – eu disse com a voz um pouco trêmula, sem ter certeza se devia mesmo me pronunciar.
- Hadevina?
- Quem pergunta?
- Posso me sentar?

Ele perguntou isso já tomando posse do banquinho à minha frente. O olhar daquele homem chegava a doer. Era profundo como se ele ouvisse os meus pensares, como se soubesse os meus quereres, como se já soubesse quem eu era. Num primeiro momento – em quase todos na verdade – eu pensei que seria presa ou algo assim.

- Parece que já sentou. O seu problema seria…?
- O mundo. O planeta inteiro. Essa confusão global que desespera as pessoas. Esse caos que tomou conta de todos. Essa pobreza que está mais na alma do que no prato de comida.
- Hm…sei. Quando isso começou?

Ele deu um meio sorriso que me gelou os ossos.

- Há mais tempo do que se pode contar.
- Bom, eu só precisava saber se era uma novidade ou um tormento antigo. Como foi a sua infância?
- A minha infância tem muito pouco a ver com isso.
- Sei…se recusar a falar da sua origem não é a melhor forma de conduzir a vida. Me conta da sua mãe…
- Minha mãe? O que tem a minha mãe?
- Como ela era?
- Uma santa, por assim dizer.
Eu fiquei olhando para ele esperando mais revelações e nada. Silêncio absoluto. Tentei me livrar logo.

- Bom…Nós podemos conversar várias vezes por semana, se você concordar, para saber de onde vem todo esse tormento e onde esta “santa” entra na história…
- Sei…Mas por que?
- Para te ajudar.
- A que?
- Você não veio aqui procurar ajuda para sua aflição?
- Ah. Sim, claro.
- Hoje é segunda. Você pode voltar na quarta no mesmo horário.
- Claro, posso sim. Mas preciso que você faça uma coisa para mim.
- O que seria?
- Uma composição. Você compõe?
- O que?
- Mágica, milagre.

Outra vez ,achei que aquele homem era policial e queria descobrir se eu invento remédios perigosos para enganar pessoas.

- Qué isso…eu faço uns chás para algumas mazelas. Você é da saúde pública ou algo assim? Olha moço, eu tenho bom coração. Não estou aqui para prejudicar ninguém não! As pessoas me pedem ajuda e eu ajudo. Só isso.

Ele colocou as duas mão enormes sobre a minha mesa improvisada e aquele gesto também congelou meus ossos. A mesa tremeu, o chão pareceu tremer, a água na garrafa que está sempre comigo fez uma tsunami e o meu sangue borbulhou dentro de mim.

- Hadevina, calma!
- Quem é você? O que você quer aqui?
- Eu preciso que você componha.
- Como assim? Compor o que?
- Vá para sua casa e pense numa magia para paz de espírito e nobreza.
- Ai meu deus, você é maluco, pode ir embora.
- Vou. Mas eu vou voltar quarta-feira no mesmo horário. E você vai escrever para mim uma mágica, uma simpatia, um milagre -- chame como chamar -- para trazer paz às pessoas. Pense e faça isso.
- Ah tá. Vou achar a cura do mundo! Ta bom!
- Exatamente. Faça isso.

Ele não era desse planeta. Que lunático! Entrar na minha tenda no meio do dia com um sol de rachar para ocupar meu tempo com coisa nenhuma. Devia estar procurando uma sombra para descansar e inventou essa história absurda de milagre…mágica…simpatia. Curar o mundo…imagina!
Ele levantou e saiu como entrou. Todo aquele corpanzil silhuetado pelo sol lá fora, cegando meus olhos. Colocou o chapéu, parado ali na porta, deu mais uma olhada para mim e aquele sorriso de tremer a alma.

- Espero que você tenha um guarda-chuva.

Eu só levantei a sobrancelha, já que aquela frase era o cúmulo da falta de assunto. Estava um dia maravilhoso, sem a menor previsão de chuva para a próxima semana. Ele largou a lona no seu estilo cowboy entrando no saloon: SHLEPT!
Eu ri e balancei a cabeça pensando nos loucos que me aparecem, quando outro estrondo fez tudo tremer: um trovão, seguido de uma tempestade incrível! Eu levantei correndo da mesa e abri a porta da tenda para ver se era verdade, sem entender de onde vinha tanta água. As pessoas corriam pela Praça da Sé tentando encontrar um abrigo e o homem misterioso do chapéu havia desaparecido. Fechei a porta e rezei para a tempestade passar logo ou minha tenda resistir a ela.
SHLEPT! Aprendi a fechar a lona com estilo.

...Continua

13 de set. de 2007

Conversadeira da Sé – II





Marcão "Alfred do Além" Brehm

E se o povo quer ungüento, que agüente. Não era raro escutar sobre desarranjos intestinais épicos, que acabavam expurgando qualquer tipo de encosto, macumba, mau olhado ou feitiçaria.
Com o tempo, acabei descobrindo que enquanto uma mistura causava apenas um leve mal estar, a mesma com alterações sutis, fazia com que o cidadão perdesse qualquer esperança em tornar a ver algo em pedaços boiando dentro do vaso. E às vezes, todo o processo durava semanas.
A técnica era simples e singela: A pessoa sofria horrores por dias, e quando tudo acabava qualquer sentimento de desgosto, angústia ou desassossego que porventura tivesse sentido em algum lugar do passado, era sumariamente substituído por uma sensação de alívio indescritível, e pelo momento sublime em que finalmente voltava a ver algo sólido (ou ao menos, não-líquido)...
Mas esta técnica era usada apenas para casos mais críticos. Na maioria das vezes, uma boa conversinha e um chá de boldo (normalmente rebatizado com nomes indígenas esdrúxulos) já resolviam qualquer problema.
Até aí tudo certo. O problema é que os casos mais críticos eram separados dos casos menos críticos de acordo com a minha disposição de espírito em cada situação. Confesso que eram diagnósticos altamente subjetivos, ainda mais com as mudanças súbitas de humor que a gravidez me proporcionava. Mas o que fazer? O negócio estava expandindo e eu não tinha outra opção.
E eles voltavam. E agora já não voltavam sozinhos: Era a sogra possuída por espíritos malignos, o vizinho depressivo, ou o cunhado com unha encravada. Problemas diferentes, medicados com a mesma mistura de capim-gordura, pêlo de cabrito e requeijão cremoso vencido (que não podia ser desperdiçado, vide as condições de fodida-ao-extremo que me encontrava), tudo amassado junto e aplicado aos pacientes sob as mais diversas formas. Mas prefiro não entrar em detalhes.
Terrível, eu sei. Terrível, mas eficiente. Extremamente eficiente.
E devo admitir: Gostava muito daquilo.
Estranhamente, mesmo quando erva-doce e gelatina se transformavam em alguma mistura alucinógena secreta de povos lendários dos Andes, não conseguia sentir remorso. Até tentava. Não com muito afinco, confesso. Mas tentava.
De qualquer forma, não adiantou nada: A simples sensação de poder decidir quem continuaria a evacuar em pedaços e quem usaria fraldas geriátricas pelo resto da semana, me deixava estranhamente feliz.
Poder decidir sobre o futuro de outras pessoas: Uma sensação totalmente nova em minha vida, de até então, zero à esquerda.
Por um momento, até achei que havia me tornado uma pessoal insensível e eternamente amargurada. Procurava a todo instante me convencer de que prestava um trabalho social importante à comunidade, mas aquele ambiente tosco e bizarro da Praça da Sé não permitia.
Porém tudo mudou quando nasceu meu filho. Ali mesmo, na Barraca da Conversadeira, no meio da Praça da Sé. Era um dia chuvoso, e tudo aconteceu muito rápido. Senti um apertão e quando percebi, já estava com a criaturinha embrulhada em alguns retalhos. Tudo isso com a ajuda dos populares, que se aglomeravam para ver o que acontecia naquele lugarzinho tão exótico.
Estranhamente, ele não chorou. Veio ao mundo sem fazer drama: Breve e prático.
Assim, resolvi chamar-lhe Zé. Não José, mas apenas Zé. Zé da Sé. Sucinto assim.
Em poucos dias, já havia me adaptado à nova vida de mãe e voltado à atividade. O Zé me acompanhava o tempo todo, e de dentro de uma caixa de madeira transformada em berço, observava em silêncio minhas consultas com um olhar atento e curioso.
Com o passar do tempo tudo voltou a ser rotina, e me tornei uma profissional ainda mais reconhecida pela clientela.
Alguns transeuntes até chegaram a perceber o que realmente se passava na Barraquinha da Conversadeira, mas muito poucos tentaram fazer algo a respeito. A maioria só ficava indignada, e alguns saíam rindo. Preferia os que riam.
Os poucos que tentaram me desmascarar, foram prontamente censurados pelos populares (mediante violência, grave ameaça, ou ambos), que àquela altura já faziam fila e pagavam em espécie: No início, apenas beija-flores, e de vez em quando alguma garça. Com o passar do tempo surgiram as primeiras araras, depois onças-pintadas, e por fim as almejadas garoupas. Ah... As garoupas!
Tudo parecia estar se acertando, até surgir aquela pessoa.

6 de set. de 2007

Conversadeira da Sé - I


por Felipe Belão Iubel




Vou direto ao ponto e fiquem sabendo que a história até fica boa, mas só depois. Meu nome é Hadevinda.
Terrível, eu sei.
Culpa da minha mãe, mas a vida a castigou e, antes de contar essa parte, quero que todo mundo entenda que não sou insensível. Então, com vocês sabendo disso, eu confesso. Minha mãe se matou a meu pedido. Ela tinha surtos de psicose e de depreciação moral aguda e eu estudava para passar no vestibular de psicologia.
Eu não passei e ela surtou. Foi aí que começou minha carreira de conversadeira. Ela surtou feio mesmo. Tive que segurá-la para que ela não sujasse a sala toda com suas próprias fezes.
Terrível, eu sei.
Então, eu cansei e comecei a conversar enquanto ela continuava surtando. Chegou uma hora que eu disse, com a maior calma do mundo:
- Mãe, quer morrer? Pois trata de se matar logo.
Ela obedeceu e eu descobri meu talento: a melhor conversadeira com 100% de resultados literais. Você pode achar pouco, mas não ligo. Afinal, minha vida estava uma merda mesmo. Eu não conhecia meu pai, havia levado bomba no vestibular por só uma vaga – alguma coisa relacionada com cotas que eu não entendi – e minha mãe me deixou só com dívidas. Ah! Também desconfiava que eu estava grávida, o que acabou se confirmando, mas o pai da criaturinha sumiu, também atendendo aos meus conselhos de conversadeira. “Por que você não some da minha vida?”
Resumindo: pai que não conheço, mãe suicida, dívidas, criança no bucho, fodida e sem perspectivas de faculdade.
Decidi exercer a profissão de psicóloga sem diploma mesmo e só mudei o nome para não parecer algo ilegal. E, como queria estar mais perto do povão, chamei meu negócio de Barraquinha da Conversadeira.
Terrível, eu sei.
Estabeleci ponto ali na Praça da Sé mesmo. Cidade grande é uma beleza pra essas coisas, porque sempre tem alguém ou mais burro ou mais desesperado que você para procurar esse tipo de serviço.
Comecei humilde. Cobrava um quilinho de qualquer comidinha, cozida ou crua, para começar. Na verdade, eu não tinha balança e pesava no olho, naquele estilo canastrão dos filmes estrangeiros. O pessoal achava que eu tinha algum dom e sempre tentava acertar no peso com medo que eu descobrisse caso fosse mentira.
E a verdade era que eu ficava fodida com os problemas deles. A maioria era mulher querendo o que fazer para segurar um “homem” ou para reconquistar um “homem” ou para encontrar um “homem”. Falo “homem” porque esses clientes terceirizados e coitados, como eu gosto de chamar, nem mesmo nome tinham. Minha resposta de conversadeira era sempre a mesma:
- Trate de arrumar outro antes desse que você quer.
Elas pareciam felizes e me indicavam para as amigas e eu só as deixava falar. Elas precisavam disso e ouviam meu conselho pré-fabricado no final.
- Essa menina sabe mesmo das coisas.
Ouvia isso muito.
Porém, o trabalho complicava quando aparecia algum homem para conversar comigo. Isso porque eles vinham fodidos de verdade. Ou com alguma doença que eles queriam que eu visse em lugares do corpo que eu preferia não olhar. Eu estava no sétimo mês de gravidez e foi aí que comecei minha carreira de compositora.
Compositora de receitas, claro.
Sempre inventava um ungüento ou uma simpatia ou um chá.
Geralmente coisa inofensiva e só para aqueles que me contavam uma história filha-da-puta de verdade, da parte do contador mesmo, eu indicava chá pelando de pêlo pubiano.
Tiro e queda, eles sempre voltavam achando que a conversadeira resolveu e traziam mais comida para eu não contar pra ninguém que beberam o próprio pentelho.
Pro resto, eu dava camomila, erva-doce, malva, quebra-pedra, alho, limão, açúcar queimado, casca de laranja e maça, capim-cidreira, mel doce, mel amargo, picão, marcela, sal grosso, sal fino, louro, nós moscada, pimentinha do reino, orégano, cominho, um pouquinho de detergente de cozinha, sal de frutas e pedra de rio.
Só com esses ingredientes eu fazia uma combinação de chás e ungüentos sem fim. E é bem isso que o povo quer.
Terrível, eu sei.
Mas ninguém gosta de ir pra casa sem receita.



Continua...