28 de set. de 2007

Conversadeira da Sé V




por Alice Salles





Era ele de novo.
Aquele moço.

Tirou o chapéu do mesmo jeito, se abaixou assim como quem pega lenço no chão e já chegou perguntando coisa.


-Sobreviveu à tempestade?


Não sei porque raios eu fiquei meio gaga do nada, mas sei que demorou um pouco pros neurônios funcionarem. Assim que percebi que tava devagar dei uma de desentendida, tossi e respondi logo:

-Ah sim, claro! Foi uma chuvinha de nada.
-De nada? De nada mas deixou tua salinha arrasada pelo que vejo!
-Ah não! Isso foi o Zé!

Dei uma risada amarela e ele me sorriu daquele jeito que me deixou meio zonza,não demorou muito e ele se sentou a minha frente, colocou o chapéu sobre o colo, ajeitou o cabelo e olhou bem fundo nos meus olhos.


-E então? Descobriu como eu faço pra resolver meu problema?
-Ah, não é assim! Vamos conversar melhor...
-Não quero ficar conversando, Hadevina! Quero a cura!

-Mas cura pra que, homem?

-Pra essa dor na minha alma!
-Ah, mas a gente "a" de ver que as coisas não funcionam assim! Você ainda não me contou da sua mãe.

-Minha mãe não tem nada a ver com isso!

-Tem de ter! Todo mundo tem problema com os pais!
-Eu não!
-Ah, então seu problema é seu pai?

-Não!

-Ele abusava de você quando era pequeno? Ai meu Deus...

-Não!

-Eu sei que é difícil, pode se abrir!
-Não é nada disso!
-Aqui você pode falar o que sente...
-Mulher! Eu não tenho problema nenhum com meu pai e nem com a minha mãe!

-Então é algum irmão mais velho que não foi bom procê?
-Não!


Eu via que ele estava ficando impaciente! Comecei a me sentir um pouco culpada porque realmente parecia que o homem era uma pessoa nobre. Nobre, nobre eu não sei ? Nunca conheci gente assim, só ouvi falar disso em filme e geralmente eram aqueles filmes chatos com gente que usa peruca branca e toma vinho em tacinha de brinquedo, sabe? Pois bem, foi aí que percebi que o moço tava estressando. Resolvi mudar a tática.


-Está bem então... Pra te falar a verdade, pensei muito no que você me disse.
-No que eu te disse? Sobre o mundo?

-Sim, sim, isso.
-E no que você pensou?

-Pensei que não posso te ajudar. Meus remédios são pra quem tem probleminha besta e que sofre porque não tem gente que realmente possa se abrir, sabe? Eu não tenho remédio pro mundo. O mundo é muito cheio de gente assim! Imagina se eu resolvo abrir essa barraquinha pro mundo! O que vai acontecer comigo? Eu que não aguento!
-Então o que eu faço?
-Faz o que quiser!
-Não! O que eu faço com a minha falta de paz de espírito?
-Não sei! Porque você não arranja um "róbi"?

-Hadevina!

-É verdade! Ajuda muito a gente a esquecer! O meu é cantar as músicas do Vando!

-Hadevina...
-Verdade!

-Faz assim, você tem que ficar aqui até que horas?
-Ah, não senhor! Não vou pra lugar nenhum com o senhor!
-Não vou te fazer mal algum!

-Não posso, tem o Zé!
-Ele vem junto, oras...

-Não senhor! Olha, o senhor seu moço já está me deixando nervosa. Por favor, vá embora, tenho mais clientes...

-Está bem. Às oito estarei aqui.
-O que!?


Não deu tempo. Ele saiu e bateu a lona e o próximo entrou. Pedi pro rapaz desetentado que havia acabado de entrar esperar um pouquinho e tentei procurar por ele na rua. Nenhum sinal.
Às oito horas lá estava ele na minha "porta".



...CONTINUA...

25 de set. de 2007

Conversadeira da Sé - IV



Por Flavia Melissa



Naquela noite eu dormi mal à beça. Achei que talvez tivesse sido a rabada que comi na janta, mas no fundo no fundo eu sabia que tinha sido aquele homem. Depois que ele foi embora, o mundo caiu literalmente sobre a minha cabeça; a água invadiu a tenda e só deu tempo de pegar minha bolsa e sair correndo dali com o Zé no colo, na direção do orelhão mais próximo, único lugar coberto disponível.

Foi uma tempestade de 5 minutos; depois disso, céu azul. Essa é uma das coisas engraçadas da vida, quando se quer que o tempo passe logo ele se arrasta, quando se quer que ele passe devagar ele voa. Foram os cinco minutos mais longos da minha vida e, quando acabaram, achei que pela minha tenda tivesse passado um furacão: todos os meus potes com as minhas ervas e os meus santinhos jogados no chão. Foi uma trabalheira conseguir organizar tudo aquilo, graças a Deus o moço dos incensos me ajudou a recolher tudo.

Ok, to me estendendo demais. Eu sei, tenho essa mania. Porque mais me auto-intitularia Conversadeira? Falo pelos cotovelos desde pequena, acho que isso é assim um pouco por causa da minha mãe, doida de pedra. Quando eu era pequena eu falava com ela e ela não me respondia, então eu conversava comigo mesma prá passar o tempo. Então eu tenho essa mania de falar à beça, e foi meio falando à beça que comecei a conversar com aquela mulher que se sentou ao meu lado no ônibus na volta para casa.

- O que você acha que precisaria acontecer prá salvar o mundo? – Eu perguntei, e a moça ficou me olhando de um jeito muito estranho. Acho que ela não estava preparada prá minha pergunta, porque ficou de boca aberta alguns segundos e depois me disse:
- Prá salvar o mundo? Precisaria explodir uma bomba atômica e começar tudo de novo.

Bomba atômica não estava dentre as minhas habilidades de Conversadeira da Sé. Não, uma coisa era emplastro, chá e pasta de requeijão vencido misturado a orégano da marca mais barata que eu encontrasse no mercado. Mas bomba atômica? Eu nunca tinha entendido nada de bomba, nem daquelas de chocolate que minha mãe fazia quando se empolgava com cozinha e passava dias e noites em claro cozinhando. Eu tinha que arrumar outra saída, pois o moço tinha sido enfático em afirmar que voltaria na quarta, mesmo horário.

Quando cheguei em casa a Adalgiza, minha vizinha, estava sentada no ponto de ônibus, esperando o marido voltar do trabalho. Adalgiza é meio doida mas é até muito boa pessoa, até que gosto de gente doida então não me importo com as doidices dela. É ciumenta que nem o diabo, logo que me viu descendo do ônibus veio me pedir uma receita que fizesse o marido ser sempre fiel a ela, emendando que não conseguia acreditar que ele dizia a verdade toda vez que ficava fazendo serão no escritório às sextas-feiras. Tadinha da Adalgiza, dei a receita e, como não tinha mais nada que fazer mesmo, engatei um papo contando do novo cliente que aparecera na tenda naquela tarde.

Quando terminei de contar a história ela foi logo dizendo:

- Salvar o mundo? Impossível! Não dá prá salvar o mundo, prá salvar o mundo antes você teria que salvar todas as pessoas do mundo. E tem gente que não tem salvação!

Entrei em casa me sentindo desolada. Realmente, salvar o mundo era uma missão impossível. Na verdade, eu não acreditava que o mundo pudesse ser salvo, a moça do ônibus e Adalgiza também não acreditavam, aparentemente só aquele cara achava que o mundo poderia ter salvação. E se o mundo não acredita que possa ser salvo, como é que eu vou fazer? Como eu disse, é só com fé que a coisa funciona.

Então eu dormi mal à beça. Foi assim que eu comecei falando e me perdi em todos os detalhes sem importância que aconteceram depois que o moço saiu da tenda e caiu o mundo sobre a minha cabeça. Tive uns sonhos esquisitíssimos, com a minha mãe se jogando pela janela, se enforcando, cortando os pulsos, tomando uma overdose de remédios... E o moço aparecia a cada cena e me dizia, com aquele olhar penetrante: “salve o mundo e salvará a si mesma”.

E eu? Será que eu acreditava que o mundo pudesse ser salvo? Pior do que isso: será que eu achava que eu poderia ser salva? Será que eu deveria achar que eu tinha algum motivo para ter que ser salva? Salva do quê, mesmo?

Foi pensando nisso que ouvi aquele barulho novamente, SHLEPT!, na porta da minha tenda. Era quarta-feira, e era o mesmo horário.
continua...

Conversadeira da Sé - III


Por Mercedes Gameiro



Quando tudo começou, eu juro ainda era inocente. Eu queria mesmo ajudar toda aquela gente sem rumo e sem esperança. Nem tudo foram receitas de “dor de barriga para merecedores”. Eu inventei simpatias sim. Tá, foram inventadas. Mas todas elas com intenção de ajudar. O universo está careca de saber que as pessoas acreditam em simpatia, e que tudo o que se faz acreditando dá certo. Eu já salvei pessoas assim. A única coisa necessária é que os envolvidos participem do pseudo-ritual. Assim como um macumbeiro mata uma galinha preta, um católico acende uma vela na igreja, um evangélico joga as mãos para cima e ora, uma bruxa cozinha seus ingredientes numa panela velha de ferro, o doente e a pessoa que quer muito que ele fique bom repetem cuidadosamente o ritual que eu ensino e materializam seu desejo. É assim que acontece desde que o mundo é mundo. Lembra o que Jesus dizia quando fazia um milagre? “ A tua fé te curou”. Ha! Ele ensinou o segredinho…eu só ponho em prática. E isso não faz de mim uma milagreira ou uma trambiqueira. Só um instrumento da fé ou da falta dela. Todo esse povo desesperado, no sentido exato da palavra: des-esperado = sem-esperança. Todos eles, eu e uma folha de papel. Tudo o que é preciso para operar um milagre.

Mas tudo corria como todos os dias. Velhos babões querendo me mostrar uma ferida no pinto, lésbicas desesperadas simulando um problema de mama, pessoas querendo ser tocadas seja onde for, só para ter um minuto de uma mão quente e cuidadosa encostada em sua pele. E eu. Ai ai ai. Eu me presto, eu sei. Mas eles precisam, então na verdade não me custa. Podia ser muito pior. Muito pior.

Então ele entrou pela porta de lona da minha “sala privé” e eu não vi seu rosto. A luz que vinha lá de fora silhuetou seu corpo e ofuscou meus olhos. A figura grande e forte parecia mais uma aparição e eu quase pude ouvir uma música dramática ao fundo, sincada com a entrada triunfal. Depois, o som da lona; SHLEPT! Mais um passo à frente e ele tira o chapéu, curva o corpo como a reverenciar uma rainha, levanta-se devagar olhando dentro dos meus pensamentos. Eu, estarrecida, esperava por uma palavra, um som, um gemido, qualquer coisa que me mostrasse quem era e de onde vinha aquela figura mágica.

- Pois não? – eu disse com a voz um pouco trêmula, sem ter certeza se devia mesmo me pronunciar.
- Hadevina?
- Quem pergunta?
- Posso me sentar?

Ele perguntou isso já tomando posse do banquinho à minha frente. O olhar daquele homem chegava a doer. Era profundo como se ele ouvisse os meus pensares, como se soubesse os meus quereres, como se já soubesse quem eu era. Num primeiro momento – em quase todos na verdade – eu pensei que seria presa ou algo assim.

- Parece que já sentou. O seu problema seria…?
- O mundo. O planeta inteiro. Essa confusão global que desespera as pessoas. Esse caos que tomou conta de todos. Essa pobreza que está mais na alma do que no prato de comida.
- Hm…sei. Quando isso começou?

Ele deu um meio sorriso que me gelou os ossos.

- Há mais tempo do que se pode contar.
- Bom, eu só precisava saber se era uma novidade ou um tormento antigo. Como foi a sua infância?
- A minha infância tem muito pouco a ver com isso.
- Sei…se recusar a falar da sua origem não é a melhor forma de conduzir a vida. Me conta da sua mãe…
- Minha mãe? O que tem a minha mãe?
- Como ela era?
- Uma santa, por assim dizer.
Eu fiquei olhando para ele esperando mais revelações e nada. Silêncio absoluto. Tentei me livrar logo.

- Bom…Nós podemos conversar várias vezes por semana, se você concordar, para saber de onde vem todo esse tormento e onde esta “santa” entra na história…
- Sei…Mas por que?
- Para te ajudar.
- A que?
- Você não veio aqui procurar ajuda para sua aflição?
- Ah. Sim, claro.
- Hoje é segunda. Você pode voltar na quarta no mesmo horário.
- Claro, posso sim. Mas preciso que você faça uma coisa para mim.
- O que seria?
- Uma composição. Você compõe?
- O que?
- Mágica, milagre.

Outra vez ,achei que aquele homem era policial e queria descobrir se eu invento remédios perigosos para enganar pessoas.

- Qué isso…eu faço uns chás para algumas mazelas. Você é da saúde pública ou algo assim? Olha moço, eu tenho bom coração. Não estou aqui para prejudicar ninguém não! As pessoas me pedem ajuda e eu ajudo. Só isso.

Ele colocou as duas mão enormes sobre a minha mesa improvisada e aquele gesto também congelou meus ossos. A mesa tremeu, o chão pareceu tremer, a água na garrafa que está sempre comigo fez uma tsunami e o meu sangue borbulhou dentro de mim.

- Hadevina, calma!
- Quem é você? O que você quer aqui?
- Eu preciso que você componha.
- Como assim? Compor o que?
- Vá para sua casa e pense numa magia para paz de espírito e nobreza.
- Ai meu deus, você é maluco, pode ir embora.
- Vou. Mas eu vou voltar quarta-feira no mesmo horário. E você vai escrever para mim uma mágica, uma simpatia, um milagre -- chame como chamar -- para trazer paz às pessoas. Pense e faça isso.
- Ah tá. Vou achar a cura do mundo! Ta bom!
- Exatamente. Faça isso.

Ele não era desse planeta. Que lunático! Entrar na minha tenda no meio do dia com um sol de rachar para ocupar meu tempo com coisa nenhuma. Devia estar procurando uma sombra para descansar e inventou essa história absurda de milagre…mágica…simpatia. Curar o mundo…imagina!
Ele levantou e saiu como entrou. Todo aquele corpanzil silhuetado pelo sol lá fora, cegando meus olhos. Colocou o chapéu, parado ali na porta, deu mais uma olhada para mim e aquele sorriso de tremer a alma.

- Espero que você tenha um guarda-chuva.

Eu só levantei a sobrancelha, já que aquela frase era o cúmulo da falta de assunto. Estava um dia maravilhoso, sem a menor previsão de chuva para a próxima semana. Ele largou a lona no seu estilo cowboy entrando no saloon: SHLEPT!
Eu ri e balancei a cabeça pensando nos loucos que me aparecem, quando outro estrondo fez tudo tremer: um trovão, seguido de uma tempestade incrível! Eu levantei correndo da mesa e abri a porta da tenda para ver se era verdade, sem entender de onde vinha tanta água. As pessoas corriam pela Praça da Sé tentando encontrar um abrigo e o homem misterioso do chapéu havia desaparecido. Fechei a porta e rezei para a tempestade passar logo ou minha tenda resistir a ela.
SHLEPT! Aprendi a fechar a lona com estilo.

...Continua

13 de set. de 2007

Conversadeira da Sé – II





Marcão "Alfred do Além" Brehm

E se o povo quer ungüento, que agüente. Não era raro escutar sobre desarranjos intestinais épicos, que acabavam expurgando qualquer tipo de encosto, macumba, mau olhado ou feitiçaria.
Com o tempo, acabei descobrindo que enquanto uma mistura causava apenas um leve mal estar, a mesma com alterações sutis, fazia com que o cidadão perdesse qualquer esperança em tornar a ver algo em pedaços boiando dentro do vaso. E às vezes, todo o processo durava semanas.
A técnica era simples e singela: A pessoa sofria horrores por dias, e quando tudo acabava qualquer sentimento de desgosto, angústia ou desassossego que porventura tivesse sentido em algum lugar do passado, era sumariamente substituído por uma sensação de alívio indescritível, e pelo momento sublime em que finalmente voltava a ver algo sólido (ou ao menos, não-líquido)...
Mas esta técnica era usada apenas para casos mais críticos. Na maioria das vezes, uma boa conversinha e um chá de boldo (normalmente rebatizado com nomes indígenas esdrúxulos) já resolviam qualquer problema.
Até aí tudo certo. O problema é que os casos mais críticos eram separados dos casos menos críticos de acordo com a minha disposição de espírito em cada situação. Confesso que eram diagnósticos altamente subjetivos, ainda mais com as mudanças súbitas de humor que a gravidez me proporcionava. Mas o que fazer? O negócio estava expandindo e eu não tinha outra opção.
E eles voltavam. E agora já não voltavam sozinhos: Era a sogra possuída por espíritos malignos, o vizinho depressivo, ou o cunhado com unha encravada. Problemas diferentes, medicados com a mesma mistura de capim-gordura, pêlo de cabrito e requeijão cremoso vencido (que não podia ser desperdiçado, vide as condições de fodida-ao-extremo que me encontrava), tudo amassado junto e aplicado aos pacientes sob as mais diversas formas. Mas prefiro não entrar em detalhes.
Terrível, eu sei. Terrível, mas eficiente. Extremamente eficiente.
E devo admitir: Gostava muito daquilo.
Estranhamente, mesmo quando erva-doce e gelatina se transformavam em alguma mistura alucinógena secreta de povos lendários dos Andes, não conseguia sentir remorso. Até tentava. Não com muito afinco, confesso. Mas tentava.
De qualquer forma, não adiantou nada: A simples sensação de poder decidir quem continuaria a evacuar em pedaços e quem usaria fraldas geriátricas pelo resto da semana, me deixava estranhamente feliz.
Poder decidir sobre o futuro de outras pessoas: Uma sensação totalmente nova em minha vida, de até então, zero à esquerda.
Por um momento, até achei que havia me tornado uma pessoal insensível e eternamente amargurada. Procurava a todo instante me convencer de que prestava um trabalho social importante à comunidade, mas aquele ambiente tosco e bizarro da Praça da Sé não permitia.
Porém tudo mudou quando nasceu meu filho. Ali mesmo, na Barraca da Conversadeira, no meio da Praça da Sé. Era um dia chuvoso, e tudo aconteceu muito rápido. Senti um apertão e quando percebi, já estava com a criaturinha embrulhada em alguns retalhos. Tudo isso com a ajuda dos populares, que se aglomeravam para ver o que acontecia naquele lugarzinho tão exótico.
Estranhamente, ele não chorou. Veio ao mundo sem fazer drama: Breve e prático.
Assim, resolvi chamar-lhe Zé. Não José, mas apenas Zé. Zé da Sé. Sucinto assim.
Em poucos dias, já havia me adaptado à nova vida de mãe e voltado à atividade. O Zé me acompanhava o tempo todo, e de dentro de uma caixa de madeira transformada em berço, observava em silêncio minhas consultas com um olhar atento e curioso.
Com o passar do tempo tudo voltou a ser rotina, e me tornei uma profissional ainda mais reconhecida pela clientela.
Alguns transeuntes até chegaram a perceber o que realmente se passava na Barraquinha da Conversadeira, mas muito poucos tentaram fazer algo a respeito. A maioria só ficava indignada, e alguns saíam rindo. Preferia os que riam.
Os poucos que tentaram me desmascarar, foram prontamente censurados pelos populares (mediante violência, grave ameaça, ou ambos), que àquela altura já faziam fila e pagavam em espécie: No início, apenas beija-flores, e de vez em quando alguma garça. Com o passar do tempo surgiram as primeiras araras, depois onças-pintadas, e por fim as almejadas garoupas. Ah... As garoupas!
Tudo parecia estar se acertando, até surgir aquela pessoa.

6 de set. de 2007

Conversadeira da Sé - I


por Felipe Belão Iubel




Vou direto ao ponto e fiquem sabendo que a história até fica boa, mas só depois. Meu nome é Hadevinda.
Terrível, eu sei.
Culpa da minha mãe, mas a vida a castigou e, antes de contar essa parte, quero que todo mundo entenda que não sou insensível. Então, com vocês sabendo disso, eu confesso. Minha mãe se matou a meu pedido. Ela tinha surtos de psicose e de depreciação moral aguda e eu estudava para passar no vestibular de psicologia.
Eu não passei e ela surtou. Foi aí que começou minha carreira de conversadeira. Ela surtou feio mesmo. Tive que segurá-la para que ela não sujasse a sala toda com suas próprias fezes.
Terrível, eu sei.
Então, eu cansei e comecei a conversar enquanto ela continuava surtando. Chegou uma hora que eu disse, com a maior calma do mundo:
- Mãe, quer morrer? Pois trata de se matar logo.
Ela obedeceu e eu descobri meu talento: a melhor conversadeira com 100% de resultados literais. Você pode achar pouco, mas não ligo. Afinal, minha vida estava uma merda mesmo. Eu não conhecia meu pai, havia levado bomba no vestibular por só uma vaga – alguma coisa relacionada com cotas que eu não entendi – e minha mãe me deixou só com dívidas. Ah! Também desconfiava que eu estava grávida, o que acabou se confirmando, mas o pai da criaturinha sumiu, também atendendo aos meus conselhos de conversadeira. “Por que você não some da minha vida?”
Resumindo: pai que não conheço, mãe suicida, dívidas, criança no bucho, fodida e sem perspectivas de faculdade.
Decidi exercer a profissão de psicóloga sem diploma mesmo e só mudei o nome para não parecer algo ilegal. E, como queria estar mais perto do povão, chamei meu negócio de Barraquinha da Conversadeira.
Terrível, eu sei.
Estabeleci ponto ali na Praça da Sé mesmo. Cidade grande é uma beleza pra essas coisas, porque sempre tem alguém ou mais burro ou mais desesperado que você para procurar esse tipo de serviço.
Comecei humilde. Cobrava um quilinho de qualquer comidinha, cozida ou crua, para começar. Na verdade, eu não tinha balança e pesava no olho, naquele estilo canastrão dos filmes estrangeiros. O pessoal achava que eu tinha algum dom e sempre tentava acertar no peso com medo que eu descobrisse caso fosse mentira.
E a verdade era que eu ficava fodida com os problemas deles. A maioria era mulher querendo o que fazer para segurar um “homem” ou para reconquistar um “homem” ou para encontrar um “homem”. Falo “homem” porque esses clientes terceirizados e coitados, como eu gosto de chamar, nem mesmo nome tinham. Minha resposta de conversadeira era sempre a mesma:
- Trate de arrumar outro antes desse que você quer.
Elas pareciam felizes e me indicavam para as amigas e eu só as deixava falar. Elas precisavam disso e ouviam meu conselho pré-fabricado no final.
- Essa menina sabe mesmo das coisas.
Ouvia isso muito.
Porém, o trabalho complicava quando aparecia algum homem para conversar comigo. Isso porque eles vinham fodidos de verdade. Ou com alguma doença que eles queriam que eu visse em lugares do corpo que eu preferia não olhar. Eu estava no sétimo mês de gravidez e foi aí que comecei minha carreira de compositora.
Compositora de receitas, claro.
Sempre inventava um ungüento ou uma simpatia ou um chá.
Geralmente coisa inofensiva e só para aqueles que me contavam uma história filha-da-puta de verdade, da parte do contador mesmo, eu indicava chá pelando de pêlo pubiano.
Tiro e queda, eles sempre voltavam achando que a conversadeira resolveu e traziam mais comida para eu não contar pra ninguém que beberam o próprio pentelho.
Pro resto, eu dava camomila, erva-doce, malva, quebra-pedra, alho, limão, açúcar queimado, casca de laranja e maça, capim-cidreira, mel doce, mel amargo, picão, marcela, sal grosso, sal fino, louro, nós moscada, pimentinha do reino, orégano, cominho, um pouquinho de detergente de cozinha, sal de frutas e pedra de rio.
Só com esses ingredientes eu fazia uma combinação de chás e ungüentos sem fim. E é bem isso que o povo quer.
Terrível, eu sei.
Mas ninguém gosta de ir pra casa sem receita.



Continua...

9 de jul. de 2007

Ao contrário do que se imagina, Julho é um mês ocupadíssimo na vida adulta e, you know, infelizmente (também ao contrário do que se imagina) agora nós somos todos adultos!
Droga!

Por isso, estaremos de férias até agosto.

Você podia aproveitar para ler os posts que ainda não leu.

See you soon!



8 de jul. de 2007

delayed epitaph


(Wow!!! 07/07/07) South Brisbane, Queensland, Australia

...as I can't call you as you... and only you can understand why...


Dear she,

Beyond your fantasy world there’s a real one, and “there”… is the place where I used to live, and the eventual “me” that eventually existed inside your fantasies wasn’t the real me living, no, not at all! No dear, I’m sure it was not a trace of the real me, and the real me just wanted the real you, on the real world, the you that’s not the same “you” that lives there in your fantasy world, and I had no expectations at all, I just wanted to get near, to hang on, to see what would come… and as it seems that you got satisfaction keeping me on that ridiculous situation, now I think there’s almost nothing left on that encompassing trip… my present was getting fully empty of you, and there’s almost nothing to say, …maybe something about losses: (but) as we can’t lose what we have not, and as I never had you or anything else, I had nothing to lose, but you did… simply cause you had, at least, me! ...and if I felt this way or whatever else I should feel, it was because I’d rather be this way, that’s the way I always was, that’s the way I loved to be, no matter what the people could think about it…I just didn’t care, and I felt better being the way I was, as I always was …I have only three words left to say about it all: what a pitty!!! All the rest is bullshit, I know, and maybe just words, well, I know the power of the written words, sometimes they’re really powerful, they can do things happen, they can destroy souls, they can fill hearts, they can make us happy or sad, they can speed up heart beatings, they can even kill someone or something, …but it’s literature at last, it’s not life itself, …maybe “just words” indeed, and I do not care about them anymore, as i did care about them and about us, I had the hope that I had found something very special in my life and it had filled me as never before… and I thought we could reach and achieve that 'something’ into… whatever, and right now, at the very end, it doesn't matter anymore… now, as it seems it was not meant to be, I feel as I was really dreaming on some words and thoughts we’ve been exchanging for too long, and this dream was veiling the very sense of reality, so… let’s get rid of it, …you’re a whole free person, as I am as well, and I really hope you’ll handle this in a different way than the way I will, ...and, if anything was near some truth it's useless now…cause I’m gonna pay attention only to the bullet that is coming right now, through this blazing barrel right to my heart... hummm, or should I do it right to my front? ...well, whatever, i'll take this decision in a few seconds and you all will know about my last decision... aah! I have nothing that could be called heritage and no one to inherit this nothing, but i'll left a last piece of advice for you dear: stop refusing possibilities in your life!!! ...for 'our' dream’s sake, it’s time for you to stop some things and start other ones… that's it, bye...

...there's never less than two options!!!


3 de jul. de 2007

Cumplicidade & Curitiba - IV

Cumplicidade & Curitiba - IV


"Through his eyes"
By Frank Viñas





Mulherzinha. A wry laugh, a murmur, slurping her coffee cup, banging the computer keyboard, is my measuring devise to feel her daily state. The light by her window is perfect, is like Rembrandt’s, Girl Leaning On A Windowsill, But Candid emotions surrounds her pale face. Mumbling, extremely focus on her acephalous hero, she said:

-- What is he thinking? His mind is blurring with obscured concepts and Outrageous ideas that would never be permitted or accepted here.

I caught her again tilting her head to the heavens, popping incoherent sentences and every so often, interrupting my thoughts. First with a scoff, then, lauder scoff, and with an “ah” before her sentence that stretches from CIC to Campo Largo:

-- Ah… refill me this, and put it a MINUTE on the microwave. I can’t stand the cold coffee! Very hot!

An eye is popping perniciously behind the wall, making faces, trying to smash the first object available but that would give it out, so I pull all my hair forward and then right back more--spiky and messed up than the way it was before. The wall is juxtaposed to the living room with the tangled and spiked hair, and big black eyes that look like somebody painted the upper lid with a black marker. That’s me-- dear me, poor me-- again, on a maid mission to serve “ the coffee nation.” The tank size cup is almost as big as our ten-year-old blender that was given by my Mother-in-law. The big thumps with my feet, gave out how my love for this trivialities keep growing. I love to thump heals first on our old and faded-black-wooden floor because it ruins her typing rhythm. The wooden table where she writes is considered “a heirloom” --now, and she adores it because is two centuries old and helps her bring back her innate state to boost her imagination.
My mornings are very stress full and as soon as the demands start rising, I know is time to hit the road. Hurriedly, the shoes, pants, and underwear lying on the bedroom for weeks on end are picked and chosen sporadically and spontaneously as I sprint through the door.

-- Goodbye! I said.

As if it was my last goodbye. The sound of a pair of hummingbirds, chirping, reinforces my departure, as I stumble over a vase near the door. I slam the door and hear her reply delayed, fading away but still in my head for the rest of the day.
I whish she made more clicks and clacks with the typewriter so that my randomness is mute and it’s kept like the dust under my bedroom carpet. There are instances where the tick of my watch morphed aloud in onomatopoetic effect. The sound bits become unbearable, it feels like when I used to inclose in my grandmother’s cupboard, with my metronome, on.
I set the tip of my foot next to the line that divides each section of the sidewalk.

-- This is great! By the time I reach two thousand five hundred and thirty one passes, I’ll forget this mourning coffee tragedy for about… sixty to the fourth… twelve million nine hundred sixty thousand seconds, until I reach the bus stop.
-- Hey Einstein get a haircut!!!

Laughing hysterically, says the boy. The car rockets down the road, screeching its winkling tires almost ready to bend out of its axel, turning the corner.

-- Hahahaha! What a piece of crap!!!! Oh Jesus, how I wish it bended and slammed to the wall.

Normally I would raise my head and tell them to go f**k himself but today was different. I was determined to become focus and forget the things I’ve see that had made me loose the trust I had for her.

-- Ok. Lets start now. One, two, three, four... this is going to be fun.

I’m up to the bus stop and my first thought is “ the shape of the bus stop,” every time I see it reminds me of a time tunnel. That is the one time when I feel safe. I’ve gone through twelve million nine hundred sixty thousand seconds to this point and I feel free from crushing emotions. More so, do not feel the courage to confront her.
As I reach the handle I ask several questions to myself; maybe to wait and let the other passengers go before me. They see me on their peripheral vision, putting a big, fat grin on, sometimes looking directly at other passengers, looking for support. I’d no longer care about my physical appearance nor the moral and civic ethics of the people of Curitiba. There are times where I feel in cases like a tourist: for instance, when asking an old lady a question to establish a conversation.

-- Where is the Couto Pereira?
She looks at me like I’m crazy.
-- Excuse me, please.
-- Does any body know where the Couto Pereira ball club is???! Thank you very much for your candor and cold answer.

It’s fun to look at their faces. Turning hurriedly scanning the bus to check if the bus is coming. Others untie their shoes and tight them back again. I can take those insults better than I can take the silence in my house.

Tick tack tick tack
Tick tack tick tack

That’s the song of my every mourning, the rhythm of her Underwood typewriter.
My rump hits the harden chair waiting for the bus. Riding the bus is a different feeling; the people pass you by; there is no feelings attached; no responsibilities and no hard pains that you have to confront to keep moving forward. But motion needs time to move forward and so my time has elapsed and my daily round, around the city has finished and is time to go home and find my courage to move forward. Maybe I will start to clean the dust underneath my rug and hang my clothes on the closet. Maybe she hates organization. That’s a good excuse to make a stand. My hand points in front of the bus.

--Look the sun hides on the horizon. It looks like is diving into the ocean and smoke vapors from the cold waters.
-- We are home, sir.
-- Thank you.
-- Next time you can sit near the door. It’ll be more pleasing for you, sir. The view is excellent. God, I know.

I tilt my head down, thanking the old man and leave the bus with great hope. I was the first to come out and the last to come in. I bet the other passengers were smoldering, at least a bit.

-- That is great! What a great job he has. What a wonderful man.


26 de jun. de 2007

Cumplicidade & Curitiba - III


Por Mercedes Gameiro


“O que você Sabe de mim pra dizer isso?” fiquei indignada demais, mas olhando S assim de cima, tudo o que eu queria era que ele Soubesse mesmo tudo de mim. Ai se ele soubesse metade de mim! “Eu Sei o que eu to vendo.” - ele disse com aquele meio sorriso meio lindo me dando essa meia raiva que me tirou do Sério. “Você vê tudo errado. Você não vê coisa nenhuma.” que raiva, que raiva! “Calma! Eu não disse nada tão ofensivo. Senta aqui.”
Senta aqui pra que? Pra escutar mais algum diminutivo? Se ele realmente enxergasse alguma coisa, Saberia que, no mínimo, eu Sou grande demais para caber em diminutivos, mesmo como ofensa.
Eu Só queria estar em casa escrevendo a minha coluna que não é lida, porque pelo menos alguém me paga para não Ser lida. Ninguém vai me pagar para fazer papel ridículo no parque, deitada na grama com um joelho enfaixado fake, e um diminutivo latejando entre as orelhas.

-Você me chamou de mulherzinha!

Mulherzinha…Eu tremo Só de pronunciar essa palavra. Eu ando nesse parque todos os dias e o que mais vejo são mulherzinhas. Todas falando mal de Seus homens – as que conseguem manter um. Todas desdenhando uma amiga, uma prima, uma vizinha. Todas com cabelos da mesma cor, usando a mesma roupa, frequentando os mesmos lugares, lendo o mesmo jornal, planejando como comprar mais sapatos Sem que o valor apareça no canhoto do cheque. As mais jovens talvez ainda não Sejam loiras, mas já prometem ser chatas e desinteressantes, e casar com um moço de bem na Igreja Santa Terezinha, e colocar os filhos no Anjo ou no Positivo, e vestirem todos eles como retardados, e comprar uma casa em Guaratuba ou Caiobá. Ela vai voltar da lua de mel dizendo: “a gente fez Miami e Orlando, né? depois a gente fez Saint Martin, né?”. Argh! Odeio! Elas casam, ficam loiras, vestem-se como Suas mães, falam como Suas mães, agem como Suas mães. Quem viu uma Curitibana de 32 anos viu todas, a não Ser eu, encalhada, Sentada no meu computador, com esse balde de café, sem encher o saco de um marido, a raiz do cabelo revelando que algo em mim não condiz com o meu meio. Eu culpo o tamanho da cidade. Não é possível escapar do padrão quando Só Se tem uns 30 km para cada lado para percorrer.

S continuava ali me olhando como Se eu tivesse me ofendido à toa. Meu rosto estava quente do sol ou da raiva ou do frio que deixava S com o nariz vermelho. A essa altura eu não Sei Se a fumaça que Sai da minha boca é do frio ou do ódio que eu tenho de Ser comparada a essas mulherzinhas - assim mesmo, pra ser uma mulher pequena bem pequena, não em tamanho, mas em "pequenez".

-Era pra você se ofender com a falta de personalidade.

Que besta…ele não Sabe nada!
- Eu Sei que eu tenho personalidade. Muita. Muito mais do que você pode Sonhar. Tanta, que talvez você não Suporte ficar perto de mim para não Ser esmagado por ela. Isso não me ofende: mulherzinha me ofende.
- Por que??
- Porque eu estou muito longe de Ser qualquer coisa que termine com “inha”.

S Soltou uma gargalhada gigante que fez com que 50% da população andante daquele horário olhasse na nossa direção.
- Qual é a graça?

Eu não conseguia Sair dali ou parar de olhar para ele. Eu poderia andar até o meu carro, ou até o bar, ou até o fim do mundo, mas droga! Aquele cara e Seu sarcasmo me intrigavam.

- Brabinha? Enfezadinha? Bonitinha?

Foi difícil não sorrir e eu juro que não queria. Eu culpo o vento gelado da manhã que faz meu cabelo voar e distrair a minha capacidade de ser malvadona.

- Não chega em “lindinha e fofinha” que eu vou embora!

Ele sorriu de orelha a orelha, levantou, me puxou pela mão e foi andando.

- Vem dar uma volta comigo, irritadinha.

Meu joelho doía um pouco, embora não tivesse mais um único arranhão debaixo daquela faixa. Acho que de tanto escrever, aprendi a acreditar nas minhas mentiras. A cada conto eu vivo dentro da personagem e passo dias não Sendo eu mesma. Por isso eu manquei como Se estivesse escrevendo e andando os passos dessa mulher que leva o peso da cruz nos joelhos e tem, segurando sua mão direita, a mão quente e confortável do dono de um sorriso arrasador.

Enquanto caminhávamos devagar até o carro de S, minha raiva foi Sendo diluída em litros e litros do cheiro bom que vinha da jaqueta dele, no jeito dele olhar nas vezes que ele me olhava mais fundo e na risada fácil, que mostrava os dentes brancos perfeitos. Não era assim que eu queria, não era mesmo, mas o parque ficou deserto. Às vezes um perfume forte e doce demais para o horário vinha da pista de cooper denunciando a presença de mais alguma mulherzinha, mas eu já não percebia nada... Só a mão quente de S tirando meu cabelo do rosto de tempos em tempos.

continua...

Cumplicidade e Curitiba - parte II


Conto nº 04
Idéia por Felipe Belão Iubel,

Parte II
por Alice Salles



Com aquela cara de ranzinza que tenho nunca imaginei que ele viria falar comigo. Se bem que falar todo mundo pode, isso não quer dizer nada. S chegou bem perto e dava pra ver a ponta do nariz vermelha por causa do frio. O cabelo todo esvoaçante e a fumacinha que Saia pela Sua boca. Aliás, foi ali que reparei... Mas que boca! Eu provavelmente fiquei o observando demais já que ele perguntou novamente "então moça, como vai o Seu joelho?". Gaguejei um pouco até responder a maldita pergunta com um gélido "tudo bem, tudo bem, obrigada". Claro que dei um Sorriso no fim dessa resposta Seca e esperei por mais alguma reação do rapaz curitibano que estava a minha frente. Ele Só Sorriu Se levantando pois tinha inclinado o tronco a frente para falar comigo e falou qualquer coisa que eu não entendi. Falou baixinho olhando para baixo e eu não entendi. Logo fiquei com cara de boba, jornal na mão, S a minha frente com uma interrogação no rosto. Eu, muda. Nervosa larguei o jornal ao meu lado no banco e perguntei "como disse?". Ele deu uma bela gargalhada e repetiu a sua pergunta. Queria Saber Se eu Sempre andava pelo Barigui. Pensei que era uma cantada furada, disse que às vezes, mas só quando estava bem frio. "Quanto rancor nesse coração", exclamou S, "quanta intimidade que não te dei!", respondi agressivamente como de costume. Ele perguntou Se poderia Sentar ao meu lado e tirei o jornal para me mover para o canto do banco. É assim que age uma mulher com a idade de Cristo e com todo o peso da cruz nas costas. É assim...

S Sentou e enfiou as mãos nos bolsos do blusão preto que estava usando. Tinha um cheiro muito bom, algo que me lembrava do meu pai que não falava comigo há decadas! Pais gaúchos São duros. Não tinha nada que passava pela minha cabeça, fiquei ali amassando o jornal com a minha mão esquerda enquanto S olhava em volta. "Quer caminhar comigo?". "Não posso", respondi "Porque?" S perguntou, "Por causa do meu joelho" respondi. Ele soltou um sonoro "aaahhhh" enquanto ainda observava o parque e suas figuras exóticas. "Quer deitar na grama?", eu choquei! "O que?" perguntei com um berro que saiu mais alto do que a encomenda. "Deitar na grama... Deitar, sabe como? DEI-TAR!", S pareceu um pouco irritado comigo como Se realmente não tivesse entendido a pergunta, mas eu entendi! "Mas deitar pra que?", "Sei lá! Pra fazermos algo diferente!", "Mas, mas...", "Chega de mas, vamos". S Saiu do banco e Se deitou na grama que deveria estar úmida e nojenta. Eu me levantei com uma certa dificuldade enquanto ele estava lá, com as mãos debaixo da cabeça, pernas cruzadas como se estivesse deitado no Sofá de casa. Apoiei meu joelho com dificuldade na grama, a pontinha dos meus dedos no chão com um certo nojo e fui me virando até finalmente deitar. A tensão estava clara no meu Semblante.

S Se virou e disse "Mas que mulherzinha Sem personalidade!". Abri os olhos e uma verdadeira indignação tomou conta de mim. Me levantei em um pulo e enlouquecida perguntei o que ele tinha acabado de falar. S Se levantou e enquanto caminhava pra longe respondeu "O que você ouviu."

CONTINUA....

23 de jun. de 2007

Cumplicidade e Curitiba







por Felipe Belão Iubel

Conto nº 04
Idéia nº 1.012.345
Parte1

Curitiba é o tipo de cidade onde o clima é apenas um reflexo do comportamento das pessoas que a habitam. Pode ser frio e desagradável pela manhã; quente e seco durante o almoço; ou temperado e aconchegante durante a noite.

De todos esses, o temperado e aconchegante é o tema dessa história. Porém, a secura e a frieza vão aparecer de tempos em tempos.

Bom, vou me apresentar, meu nome é Cristiane. Mesmo número de sílabas de Curitiba, apesar de existirem discussões a respeito do “a” do hiato bem no meio do meu nome. Aliás, ter um hiato no nome é sinal de má sorte, pelo menos para mim, em meus relacionamentos foi assim até hoje. Como um hiato, acabamos sempre separados, um em cada casa ou sílaba. Além do número de sílabas, meu nome também começa com “C”, o que é a explicação mais óbvia para ser tão igual à cidade, principalmente no que se refere aos termos aconchegante e temperado. Inclusive é nesse tipo de clima que essa história começa.

Conheci “S” enquanto caminhava no Parque Barigui. Ah! O Parque Barigui. Recanto das espécies mais bizarras de toda cidade. Pessoas Sem perspectiva de diversão, pessoas Sem perspectiva grande futuro fora da cidade, pessoas Sem perspectivas de simpatia, pessoas Sem perspectiva de arrumar um namorado, como eu. Também não precisa me julgar, gosto de caminhar. Além disso, já tenho meus 32 anos e, Se eu não me cuidar, vou chegar na idade de Cristo com cara de quem foi pregada na cruz. Enfim, eu estava caminhando no parque e passei na ponte que fica perto de onde o pessoal gosta de fazer alongamentos. O rio estava mais fedido do que nunca, mas a gente nunca fala disso, afinal em Curitiba gostamos de fazer de conta que a cidade é perfeita.

Continuei andando, inebriada pelo aroma de valeta, até que vi um rapaz bonito, loiro, cabelo bagunçado, minha idade, meio barrigudinho, mas não vi problema nisso. Caminhei propositalmente para perto dele, mas mostrei absoluta falta de interesse e desdém, afinal é isso que as mulheres de Curitiba gostam de fazer em meio à frieza da manhã, da tarde e da noite. Ele nem percebeu que eu existia, mas eu percebi que ele era o tipo de curitibano que Se encheu de tentar trocar um olhar com uma curitibana por causa de todos esses infortúnios de comportamento.

Mas, e é importante reconhecer que esta foi a razão para meu comportamento, eu ainda estava inebriada pelo aroma do riacho doce do parque. Então tropecei. Estava apenas a dois metros de distância dele. Claro que, como um homem gentil que descobri depois que ele era, S me ajudou a levantar, perguntou se eu estava bem e a história acabou por aí naquele dia. Culpa da cidade. Aliás, nós curitibanos adoramos colocar a culpa na cidade.

Fui para casa para terminar de escrever meu conto. Esqueci de dizer Sou escritora. Escrevo uma coluna a cada quinze dias para um jornal de grande circulação na cidade. Dizem que é um bom jornal, mas eu Sei que não passa de uma resenha da Folha e do Estadão do dia anterior. Eu também não Sou grande coisa em termos literários. Enfim, gosto do jornal. Do jornal e da cidade, mas minha coluna é praticamente desconhecida. O povo de Curitiba acha que eu fujo do assunto no meio da história. Eu culpo a cidade.
Passei o resto da semana pensando em S e no meu tombo, afinal meu joelho ainda doía. Eu pensava e Se eu o encontrar novamente e Se eu não o encontrar? Perguntas não faltavam e acabei indo ao parque naquela semana inteira. Fiquei até amiga do rapaz que vendia água, o que não é normal em Curitiba. Eu culpo a frieza da manhã.

Após uma Semana de Solidão e Silêncio. Eu estava quase desistindo, mas Sempre fui persistente. Persistente ou não, nunca me Senti tão Só. Até que, no domingo e no parque, encontrei-o, com numa música do Chico. Sentei perto do mesmo lugar em que ele fazia alongamento. Fiz de conta que lia o jornal com cara de concentrada. Ele tinha um Semblante Sóbrio e Sábio para quem faz apenas alongamento. Tamanha foi minha Surpresa quando ele veio em minha direção e perguntou: “Como está seu joelho?”

Claro que eu tinha enfaixado minha perna sem necessidade. Afinal, precisava dar uma deixa para ele perguntar alguma coisa. Aí começou minha história com S. E Se eu não tivesse enfaixado minha perna? - eu penso hoje. Teria sido bem melhor. Sou capaz de apostar que Sim: mais Simples, menos Sofrido. Eu culpo a cidade, o tempero e o aconchego. E quem não culpa?

CONTINUA...


22 de jun. de 2007

Romeo & Juliet

Epitáfio
por Mercedes Gameiro
Conto n.2


Entregamos nossos corpos, por não precisar deles para eternizar o que sentimos.
Entregamos nossas vidas para que sejamos livres.
Entregamos nossas almas para amar para sempre.

Entregamos um ao outro o que somos e o que fomos.

"Eyes, look your last!
Arms, take your last embrace!"



Carla e Jonas


˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚


Carta lacrada, encontrada na bolsa de Carla

Para
Glorinha Lacerda
Em mãos



Glorinha amada,

Eu preciso contar pra você o que aconteceu de verdade.
Sei que posso, porque você vai entender e não vai contar pra ninguém, porque sempre foi minha melhor amiga, sempre me escutou com paciência e acreditou em mim.
Tudo não passou de um acidente, Glory, juro. Mas ninguém acreditaria em mim. Eu sei disso. Tenho certeza.
Desde pequena ninguém acredita que eu faço coisas sem querer. Desde a vez que quebrei um vaso da minha avó e ela fez queixa para a minha mãe dizendo que eu era dissimulada, sonsa, que fingi que não fui eu. Glorinha, foi tão injusto! O vaso caiu e quebrou quando a Vó não estava em casa. Eu tinha ido na padaria comprar o que ela tinha pedido em um bilhete escrito antes dela sair. Quando ela chegou, eu não tinha voltado ainda e o vaso estava quebrado. Ela perguntou para a empregada quem foi, e a empregada não sabia. Ninguém sabia mesmo…Eu cheguei em casa e, antes de eu poder contar, ela já começou a brigar, dizendo que eu não podia quebrar as coisas e esconder... Você sabe bem o resto.
Foi sempre assim. Sempre. Você sempre viu. Mesmo quando alguém mais estragava alguma coisa, ela dizia: “Essa menina não pode ser tão estabanada! Pra mim ela faz de propósito!”

E essa é a lenda que reza na minha familia. Agora, como eu poderia contar o que acabou de acontecer? Eu não queria acabar com tudo dessa maneira, Glorinha, mas acho que é a saída mais bonita.
Presta atenção:
Eu e o Jonas fomos a uma festa ontem à noite. A festa foi divertida e nós bebemos um pouco. (Você sabe que ele exagera, né?) Dançamos um monte, rimos muito e ele me convidou para encompridar a noite. Viemos para esse hotel. Você precisava ver que lugar legal! Pedimos a maior suite. Glorinha!, dava pra fazer uma festa pra 200 pessoas aqui dentro. É a Disneylandia inteira só pra nós dois. Tem até máquina de fliperama!
A gente chegou, brincou de tudo o que tinha pra brincar, caímos na piscina, fizemos melhor de três no flipper, fizemos sauna, comemos tudo o que tinha no frigobar, bebemos champagne, nos divertimos demais. Depois tomamos um banho e dormimos um pouco.

Quando a gente acordou, o Jonas resolveu brincar um pouco mais pesado. Ele tinha umas balas (você sabe de que bala eu to falando). Ele tomou uma e deu uma pra mim. Ele também cheirou e tomou mais um negócio que eu não sei o que era, mas eu não. Dançamos um monte…depois transamos um monte…e depois mais, depois mais. Ele estava completamente doido, e eu chapada demais. Quando começou a baixar, vimos um filme. Depois, estávamos conversando na cama e ele parou de responder. Glorinha! Assim, do nada! Do nada, ele parou de responder. Eu chamei ele e nada! Eu sacudi ele, e nada! Eu gritei! Eu bati nele! Eu joguei água fria na cabeça dele! Glorinha!!!!!!! Eu quis chamar uma ambulância, mas não adianta. Eu fiz tudo o que eu sabia: boca a boca, massagem cardíaca. Eu girtei, gritei, gritei! Glorinha, o Jonas não se mexe! Ele não responde! Ele morreu, Glorinha! Morreu! Ele está ali na cama, sem vida, gelado!!! Eu acho que ele nem está mais ali naquele corpo. Ele foi embora, Glorinha!
Eu pensei em chamar a polícia, a gerência do hotel…mas não vou.
Eu não vou ficar aqui para ser acusada de fazer tudo errado. Eu não vou sentar e esperar que me apontem o dedo:
" Olha a namorada do drogado do motel! Louca! Promíscula! Drogada!"
Eu não vou esperar que alguém diga que foi tudo culpa minha! Vão querer me internar numa clínica. Eu não sou viciada! Mas quem vai acreditar, Glorinha? Só você. Eu não vou esperar que a minha avó comente com as amigas da minha mãe que eu sempre fui um problema. “Ah…Ela era uma sonsa!”
Então amiga, só você sabe a verdade. Foi um acidente.
Tão horrível... A única coisa boa é que o Jonas estava muito feliz. A noite foi linda. Tudo delicioso...

Depois de pensar por horas, vendo o Jonas, lindo, deitado ali, tão tranquilo, eu decidi que vou junto com ele. Eu sei que ele vai me esperar. Pedi papel e envelope na recepção e resolvi escrever, eu cheirei tudo o que ele tinha na mochila, amiga, e tomei as outras balas. Cinco. Vou ficar por aqui até começar a me sentir estranha e vou deitar ao lado de dele, esperar que ele me pegue pela mão.

Desculpa por isso, minha amiga. Eu te amo demais.
Não conta pra ninguém esse segredo, ta? Deixa eles pensarem o que eu vou fazer eles pensarem.
Não fica triste comigo. Nem fica triste por mim. Eu vou ficar bem.

Um beijo enorme.
Se cuida bem cuidadinho…
Da sua eterna amiga,

Carla

P.S. Fala baixinho pra minha avó que "desta vez, sim, foi de propósito."

˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚˚

Esta carta foi usada como evidência na defesa de Jonas Ferreira de Andrade -
acusado de tráfico de drogas, aliciação de menores, cárcere privado e homicídio doloso da menor Carla Schimidt. O acusado foi inocentado das acusações mais graves, mas cumpre pena de 3 anos por tráfico de drogas.

20 de jun. de 2007

Cobra


Epitaph
By Frank Viñas




Now, I feel as nothing matters. The constant strolls on the main deck are displeasing to my crew. They know. It’s nerve racking to them. They are aware of my state. I hear it louder and see it clearer than ever, magnified a thousand times over. I see, each officer staring at each other, from every angle. After living for years and years together and navigating in this gigantic-sized city, slaloming and skidding deadly events in the darkest confines of my dreams, they know me better than I know myself.

I hate being predictable but love the moments of anticipation that my officers attended my peccadilloes, a crude and harsh task my crew despised. In my quarters, resting on my hovering bed, I stare the infinite darkest skies and think what would of happen if I had been less selfish and given up my life in the military. Maybe it would of turned out differently. Maybe I would have been loved the way I wanted. “ …no that’s selfish; I can’t think like that.” Everybody looks at me as if I’m not there. I still feel that sense of replacement. I whish I was invisible then.

Checking the main engine room without my favorite red suit; scaring them with tickles, pinches and thumps; making facial caricature gestures to the officers; dancing in their faces, releasing anger—I hate them all now. As I float through the labyrinth-like halls of the ship searching for reasons I hear wry laughs from a small corner. I can hear the engineers mocking me, turning their responsibility away and playing a game of chance in time of war. “I want to break this thin layer of universe and grab them by their elastic suits and choke them with it! “Telling my faults as a Captain, ha.” Prattling what they would of done if they were in my place. God! It feels so good no to be alive. It most be “a real heaven” like they used to say a thousand years ago. But knowing the truth now makes it unbearable for me.

I, homeless, timeless, like a still image in the universe, is hell. The only insignificant and smallest trivial Artemian in my non-existent life was the only thing I should of cherished. My Goddamn pride and ambition is the final result of my destiny. Always like an idiot chasing my on tale, “Cobra the conquering hero.” I must look like an idiot talking to myself. I keep reviewing that time in my quarters thinking what I know now and the pain of myself watching it over and over and it pleases me more than the actual reality. A thousand years anchored in this contract, and I’m ready to be reborn again.

19 de jun. de 2007

Um pequeno Adeus



Conto No. 2
Por Flavia Melissa
Desafio Caixa Preta IV


Eu sempre soube que este dia chegaria. Eu sempre soube, desde a primeira vez em que as crianças da escola me ridicularizaram por eu ser diferente, desde que as meninas rejeitavam meus convites para dançar porque eu era diferente. Algumas me tratavam bem, é verdade, mas eu sempre soube que era por pura piedade. Por pura misericórdia. E, porque não dizer?, por puro medo.

Nunca vou me esquecer, na segunda série, quando a diretora entrou na sala de aula falando sobre diferenças. Nunca vou me esquecer de como me senti envergonhado, de como quis me enfiar debaixo da mesa, de como eu quis sumir. De como enrubesci quando ouvi as crianças cochichando, entre si: “quer dizer então que ele não vai crescer?”. De como me surpreendi, eu mesmo, com aquilo: “quer dizer então que eu não vou crescer?”.

Sempre soube que eu era diferente, oras bolas, sou inteligente o suficiente para perceber que algo de errado havia comigo. Eu tinha essas mãozinhas pequenas, esses pézinhos pequenos e o corpo todo pequeno. A única coisa que não era pequena e que tinha o tamanho normal era minha cabeça. Exatamente do tamanho da cabeça do meu irmão, tanto é que usávamos os mesmos bonés na praia. Eu sempre soube que nunca seria igual a nenhuma outra criança. A nenhum outro adolescente. A nenhum outro adulto.

E é por isso que me juntei ao Circo. Lá, eu me transformei em um pequeno-grande homem, o Menor Homem do Mundo! Lá eu pude conhecer a fama, e o que ela poderia me proporcionar. A cada espetáculo, quando me anunciavam e eu subia na ribalta usando minha calça risca-de-giz e suspensórios e gravata borboleta combinando com tudo, eu me sentia importante. Lá conheci meus melhores amigos. Lá todos eram diferentes como eu e eu quase consegui me sentir normal. Lá todos tínhamos nossas histórias de sofrimento, todos tínhamos nosso histórico de sermos diferentes: a mulher barbada e seus traumas da adolescência, as irmãs siamesas, uma lésbica e a outra não. O homem de dois metros e oitenta de altura que me ensinou que, às vezes, ser pequeno era – literalmente – o menor dos problemas.

Lá eu fui feliz, conheci o mundo e amei mulheres, porque eu era famoso e elas queriam conhecer a sensação de me experimentar. Descobri dotes que eu não sabia que possuía, senti coisas que eu não imaginava que existissem. Lá eu me senti único e especial como nunca havia me sentido, lá eu fui feliz de verdade.

Até que Ele apareceu. Ele, um centímetro menor do que eu. Ele, que tinha até mesmo a cabeça menor do que a minha. Ele, que ganhou o meu lugar, passou a usar as calças risca-de-giz com suspensórios e gravata borboleta combinando ainda menores. Ele, que passou a subir na ribalta junto comigo e me fez perder a graça, qual é a importância do Menor Homem do Mundo quando deixa de ser o menor?

Ele. Ele, que acabo de estrangular dormindo, sem que ninguém percebesse. Ele, meu odiado e ao mesmo tempo amado, pois foi a primeira pessoa que me permitiu experimentar a sensação de olhar alguém de cima, está morto aqui ao meu lado, enquanto escrevo esta carta. Enquanto apertava seu pescoço, imaginei que voltar a ser o Menor Homem do Mundo fosse me satisfazer, mas ledo engano. Eu sempre saberei que sou o segundo menor.

Nada mais me resta, não tenho nenhum bem a ser herdado, a não ser meu banquinho no qual subi tantas vezes para fazer graça em apresentações, no qual devo subir, pela última vez, em breve. A corda já está a postos, esperando pelo meu pescoço. Que meu banquinho fique para o dono do circo, com meus votos de que rapidamente encontre um substituto, sem trocadilhos, à minha altura.

Que escrevam em meu epitáfio: “Aqui jaz o homem para quem um único centímetro foi o suficiente”. Que meu último feito seja o de ter proporcionado a inesquecível experiência do enterro de um anão, para alegrar e divertir aqueles que vivem brincando que, assim como cabeça de bacalhau, nunca haviam visto. E, por favor, me perdoem pela pequenez de meus atos. Quem sabe, morto, eu consiga ser maior do que fui em vida.

Anão Jacinto A. Glória – para sempre, o Segundo Menor.

15 de jun. de 2007

Epitáfio Piegas


por Felipe Belão Iubel
conto n.2



Onde quer que esteja

Durante meus dois últimos dias nessa sua terra que é de ninguém, pensei em como dizer toda a verdade para você. Imaginei que uma carta diria tudo. Porém, agora, onde quer que eu esteja, sei que não é assim que os sentimentos funcionam.
Naquele dia em que você terminou tantos anos em apenas uma ligação, eu chorei. Chorei e dei repetidos socos na parede até minha mão ficar roxa e do tamanho da minha insensatez. Chorei mais e pensei: “Hoje ela partiu meu coração.”
Bobagem. O tempo cura. O relógio não parou. Tac Tic, ele me dizia. Tac. Tic. E outra mulher chegou. Fui feliz. Muito mais do que fui feliz ao seu lado. Hoje, onde quer que eu esteja, sei bem disso. Eu passei a escutar mais. Passei a ter mais paciência. Aprendi que não precisa durar para sempre. E acabou.
Tac. Tic. Em seus ponteiros o tempo me trouxe uma paixão que era só minha. Paixão de adulto, gente grande. Recebi mais carinho do que em todos os anos ao seu lado. Eu sabia disso na hora. E, hoje, onde quer que eu esteja, sei que não é tão simples assim. Afinal, carinho não é quantitativo, diria um poeta chegado na pesquisa científica.
Tac Tic, o tempo me dizia. E eu respondia: Mas por que ainda penso nela com tanto amor? Loucura, alguns me diziam. Bobagem, outros. Obsessão, os que restavam. Porém, o tempo sempre me disse: Amor. Só que hoje, onde quer que eu esteja, sei que era daquele tipo de amor que não é pra ser. Foi feito para sentir.
E o mais engraçado de tudo é que só depois que pensei em me despedir dessa sua terra que é de ninguém é que percebi: para aonde quer que eu vá, continuarei amando. Para aonde quer que eu vá, não restará mais nada da loucura, bobagem ou obsessão. Amor, só amor. E agora, enquanto digo adeus, vejo que você nunca partiu meu coração. Eu mesmo acabei de destruí-lo.



Daquele que não recebeu seu amor e implora pela negação do seu ódio.
Daquele que aprendeu a sentir o tudo e o nada com você.
Daquele que, onde quer que esteja, ainda ama e pó.

14 de jun. de 2007

PostSecret - Epitáfio

Um epitáfio ao contrário.
PostSecret - 10/06/2007

*achei que cabia bem aqui.

12 de jun. de 2007

Ao infame portador



Conto nº2
por Alice Salles

Desafio Caixa Preta IV





Ao infame portador


São perdidas as causas pelas quais lutei. São perdidas todas e mais algumas que não me aceitam, que não me abraçam e não irei tentar mais. Peço desculpa por esse orgulhoso egoísmo que vive em mim e que morrerá comigo, ninguém vai ter que agüentar mais disso. Já fui tão amado, já fui tão querido, mas nunca da forma que deveria ter sido. Ser amor e tê-lo sempre foi meu único e mais precioso objetivo, mas nunca foi alcançado. Tenho tanta pena de todos. Tenho tanta pena por todos aqueles que não vêem o quanto o amor ronda e o quanto o amor os quer. Tenho tanta pena das gentes que não consigo nem olhar para as minhas próprias mãos sobre essa mesa de madeira antiga que repousa nesse quarto e que foi meu repouso já faz alguns anos. Sinto uma profunda piedade por mim e não quero saber de choros, de gente esperneando ou de reuniõezinha esbaforidas, já tenho vivido muito disso. Me dêem paz. Deixo a quem me ama de verdade – e a decisão cabe a todos aqueles que viveram parte da minha vida comigo e que já tiveram uma foto tirada ao meu lado – tudo o que tenho. Não quero saber de problemas de posse ou nada parecido quando encontrarem o que restou do meu corpo nesse piso gelado. Não quero saber de nada, pois não saberei. Vocês não vêem? Eu morro por pena demais em mim. Por não conseguir me ver além da dor do outro. Só vejo dor, por todos os poros que ainda respiram, por todos os centímetros de pele que envolve meus músculos, por todos os momentos de minha vida essa pena se alojou em mim. É por isso que assino esse último bilhete que talvez jamais será lido a todos que merecem ouvir... Morro pelo amor que não consegui viver.


Peço aos meus amigos, calma.
Peço aos meus irmãos, ordem.
Peço ao meu amor, olhos...


Leires Carroll


P.S.: E coloquem em minha lápide uma única flor. Não quero nada apodrecendo sob a terra além de mim mesmo.

8 de jun. de 2007

Epitáfio

Conto n.2
por Felipe Belão Iubel





* foto Alice "Wonderland Girl" Sales


Terça-feira, Doce Chuva

Acordei deitado num gramado coberto com folhas amarelas. Amarelo daqueles de outono e folhas daquelas com cinco pontas. Acordei assustado, pois parecia que eu havia caído de um abismo. Penhasco. Desfiladeiro. Barranco. As palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos, com vozes de outras pessoas. E, de repente, elas estavam todas ao meu redor. Falando coisas boas. Lembranças de meus últimos cinco dias.

Nos meus últimos dias, elas diziam, eu fui feliz. Feliz a ponto de sentir medo da morte pela primeira vez. “Para Ela, esse cheiro é como o de bolo de fubá quentinho com manteiga derretendo.” Café pingado. Queijo quente. Chocolate derretido. As palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos. As vozes me faziam recordar do café de sexta-feira na casa do meu avô. O piso de madeira rangendo sob meus pés. Meu avô arrastando o chinelo, cada dia mais velho. “Mas ele não tem medo da morte.” Não tinha e continua caminhando, as vozes bondosas me diziam.

Na estrada para aquela cidade que guardava o epílogo da minha história, jamais imaginei que um dia escreveria meu epitáfio. Dirigia sem pressa. Com cuidado. Queria chegar com jeito de quem aproveitou a viagem. Parei num daqueles cafés coloniais. Tomei mais uma xícara de café pingado. Experimentei um pedaço do queijo provolone. Comi pão italiano com requeijão quentinho. Segui na estrada. Cinco horas antes do café e mais cinco horas logo depois. Direto. Direito. Sem pressa. Sempre.

A cidade era pequena, as vozes me contavam. Interior. Muito mato. Pouca gente. Fui logo procurar a jornalista que havia encontrado o pedaço de papel. O segundo dia passou rápido ao lado dela. Cabelos castanhos escuros. Olhar claro distante e com aquele contorno cinza que faz o azul parecer mais azul. Sua blusa branca colava no corpo e mostrava um pedacinho do abdômen. Sua calça jeans era simples, barata. Ela tinha perfume de chuva. Doce e úmido. Cada minuto ao seu lado, fazia aumentar meu medo de morrer. As vozes repetiam. Medo. Pavor. Terror. Palavras diferentes chegavam fáceis ao meu pensamento.

No terceiro dia, beijei-a. Beijo logo após a primeira caldereta de chopp. O gosto da cevada do chopp claro que ela pediu se misturava com a do meu chopp escuro. A cidade ficou ainda menor. Minhas mãos passearam pelo seu rosto. Seus cabelos se misturaram em meus dedos. Nossos corpos ficaram próximos e úmidos, colados e apaixonados. Ela me disse que ainda não poderia mostrar o pedaço de papel. As vozes também me contaram que ela gostava do meu jeito de escrever. Um lágrima dela, com cheiro de bolo de fubá e manteiga, caiu na toalha rosa do bar e fomos para o hotel.

Amamos. Amamos a vida e um ao outro. Devagar e com carinho. Com paixão e com força. Sentimos os corpos passeando e descobrindo aquilo que se propôs na sua criação. As vozes me faziam lembrar, como se o pensamento fosse só meu. Elas não invejavam, mas desejavam para elas também todo aquele desejo e paixão. O lençol branco sucumbiu aos pés da cama. Amamos no chão. Beijamos e adormecemos, mantendo o contato de meus lábios grossos e de seu ombro delicado.

Na manhã seguinte, acordamos entre a névoa do meu desejo e o seu cheiro de chuva doce. Ela me mostrou o pedaço de papel. Eu li e chorei. Cada uma das lágrimas, contavam as vozes, representavam uma das vogais usadas naquele pedaço de papel. Minha letra, com certeza. Ela chorou, quando confirmei. Abraçamos um ao outro e nos amamos com saudade. Meu braço percorreu suas curvas como jamais haviam feito. Discutimos sobre rasgar o pedaço de papel enquanto caminhávamos em frente às casas de arquiteturas italiana e alemã antigas. Sonhamos um futuro e as vozes me disseram que mandamos para longe um pouquinho do nosso presente. Meu presente era ela e o pedaço de papel tinha esse texto.

As vozes de outras pessoas me contaram logo depois. Contaram que eu morri no quinto dia, pois dirigi depressa demais. Com pressa de sobra. Com pressa de futuro. Com pressa e com lágrimas. Lágrimas que mancharam o pedaço de papel e embaçaram minha vista. À curva, não resisti. Abismo. Penhasco. Desfiladeiro. Barranco. Meu corpo se perdeu para sempre, logo depois de encontrá-la.

No final do pedaço de papel, meu testamento jazia. Dizia que meu legado era só dela. Cada palavra escrita. Cada vogal com gosto de lágrima. Cada passo com gosto de bolo de fubá e manteiga. Cada lembrança boa de café com leite e chocolate derretido. Cada pedaço meu - de carne e de papel, de sonho e de lembrança – pertencia àquela mulher com perfume de chuva doce.

Doce chuva. E, deitado entre todas aquelas folhas amarelas de outono, as palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos. E as vozes ficaram roucas e sumiram. E o cheiro de chuva doce virou memória. E o pedaço de papel caiu do céu em suas mãos outra vez, pela primeira vez.

5 de jun. de 2007

EPITÁFIO

Conto número 2
por
gravata




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EPITÁFIO


Por Mercedes Gameiro
Conto nº2




Meus queridos,

Juro que, se eu pudesse, entraria numa máquina de evaporar.
Se tal máquina existisse, ela evaporaria pessoas, dores, sofrimentos e lembranças. Assim, eu poderia simplesmente desaparecer da face da Terra sem que ninguém sofresse por isso.
Eu queria simplesmente não faltar - não ser nem mesmo como aquele vaso que fica no canto da sala desde “pra sempre”, e a gente já nem repara a existência. Porque se um dia alguém tirar o vaso do canto, ninguém vai ter certeza do que mudou, mas todos notarão que falta algo. Nem isso... Nem um vaso eu queria ser.

Queria evaporar sem culpa e sem deixar que alguém se achasse culpado, nem por um segundo. Simplesmente não há culpados. Eu sempre odiei as cartas que os suicidas deixam, porque elas são sempre dedos pesados apontando para alguém que, muitas vezes, não sabe que errou. E justamente por isso estou escrevendo: só para dizer que vocês fizeram tudo certo. Tudo certo!

Eu lutei para sobreviver dentro de mim, mas fracassei. A vida toda olhei à minha volta e percebi o quão plena e feliz a minha vida deveria ser. Via estas pessoas vivendo praticamente para mim, em função do meu bem estar, sempre com sorrisos prontos, sempre dispostos a tudo. Eu deveria ser feliz, mas não consigo. Eu juro que lutei muito. Acho ingrato, acho injusto, me torturo, me culpo, me condeno por não conseguir sentir por mim mesmo uma mínima parte do que vocês sentem.

Eu sinto o amor de vocês. Nunca imaginem que não. Eu o sinto em cada toque e cada palavra. E sofro por não saber retribuir! Eu quase explodo por querer dar de volta alguma coisa que pudesse fazer vocês terem alguma recompensa, mas não sou capaz.
Eu e todas estas vozes que me torturam somos pessoas escuras, escusas, de alma pesada, de desejos horríveis. Quando uma delas fala mais alto, eu travo uma batalha imensa para tentar contê-la, por medo que algo de ruim aconteça a um de vocês. Elas são sombrias. Elas são cruéis e zombam de mim. Sinto-me como uma criança presa dentro do armário enquanto os amigos quebram seus brinquedos. Meu sofrimento é maior do que a própria vida e só há uma maneira de acabar com ele.

Por isso preciso pedir perdão. Preciso pedir que me esqueçam. Preciso que tenham certeza de que eu sei que vocês fizeram por mim tudo o que podiam, mas simplesmente não há mais esperanças para mim. Não há como esperar a cura, a redenção, ou um olhar divino em minha direção. Não seria justo fazê-los sofrer mais tempo. Preciso ir.

Deixo minhas economias - que são poucas - para Mamãe. Minha coleção de futebol de botão e meu De Lorean Match Box para o Pancho - rotweiler da Dona Mércia. Sei que é difícil que vocês entendam, mas em seus passeios matinais, ele fala comigo. Talvez ele seja o único a viver na mesma prisão, dentro de um corpo que não condiz com seus desejos. Tentem salvá-lo. É uma boa alma.

Não gastem dinheiro comigo. Não façam um enterro luxuoso. Não cremem meu corpo. Doem qualquer parte minha que seja necessária para alguém - menos meu coração apodrecido e meu cérebro doente. Se mesmo assim, ainda sobrar algo a ser enterrado, escrevam na minha lápide:
“Desapareceu para fugir do inferno”.

Desfaçam-me. Desmontem-me. Façam de forma a nunca mais minhas partes serem vistas juntas. Morrer é pouco para alguém como eu. Preciso ser exterminado. Me ajudem. Só assim eu terei paz.

Com todo o amor que eu não soube mostrar,

Caim Abel Angelo

30 de mai. de 2007

Eu e eu

Conto n˚1
Por Fastolf Brambel
Desafio Caixa Preta III



Branco... tudo branco. Muita luz. Cheiro bom. Tudo branco... Tudo estranho. Branco.

Não via nada, nada além de uma forte luz que me cegava. Sabe quando ligam a luz e você está dormindo? Então... só que branco. Tudo branco.

Rápidamente surgiu um vulto que, agora devagar, vinha em minha direção.

- Rafa? - ele disse.

Quanto mais o vulto se apróximava menos luz entrava. Quanto menos luz entrava mais nítidas as coisas ficavam.
Consgui ver um pouco. Aos poucos um rosto ia se formando enquanto repetia ininterruptamente o meu nome. Um rapaz bonito, preocupado e sorridente ao mesmo tempo.

- Rafa? Rafa, tá me ouvindo?

Olhei no fundo dos seus olhos buscando qualquer sinal de identificação. Ele sorriu, me olhou profundamente e sorriu. Recuei assustado assim que percebi quem é que estava ali. Era eu! Estava ali, eu! Era eu falando comigo mesmo. Um eu imóvel e um eu em pé. Um eu deitado e um eu me olhando. Se olhando, enfim...

Sem muito entender arrisquei um simples palpite:

- Você é um anjo?

Ele riu, e sorriu ainda mais.

- A mãe sempre diz que sim...
- Deus é mulher? - Perguntei entendendo menos ainda
- Não sei, Rafa, não sei.

Ele chorou. Deixou duas lágrimas escorreram. Primeiro veio a do olho esquerdo enquanto ele lentamente tremilicava a boca e o nariz. Depois veio a do olho direito, seguida de outro sorriso e um suspiro profundo.
Tudo doia. Começava a sentir cada membro do meu corpo amortecido.

- Estamos no céu, anjo-eu? - Perguntei enquanto ainda não conseguia ver tudo ao meu redor.
- Você não morreu, Rafa, e eu não sou um anjo. Estamos no hospital.

Me esforcei ao máximo para ver meu próprio corpo deitado, um lençol azul e alguns objetos decorando o que eu entendi ser uma parede.
Tudo agora era mais claro. Quero dizer, menos claro, mais nítido.
Um quarto branco, a cama, uma TV de plasma, cheiro bom, flores, muitas flores, dor no corpo, quadros e eu. Não, eu não... esse rapáz jovem e bonito, forte e sorridente, que não é um anjo mas também não sou eu... Então quem é? Pensei.

- Você tá bem? Deixa só eu apertar esse botãozinho aqui para chamar a enfermeira. Sente dor?

Quanto menos entendia, menos respondia.

- Mas... você?... eu?... por quê?...

- Rafa, sou eu, Lucas...

Meudeusdocéu.

- Lucas?
- Você lembra de mim?

Essa era uma questão difícil. No momento mal lembrava de mim. Lucas, para mim, era um nome e um sentimento. Lucas não era uma lembraça. Talvez fosse um futuro.

- O que aconteceu? - perguntei.
- Você sofreu um acidente, ficou alguns anos em coma. O médico falou que teriamos problemas com a sua memória. Que não lembraria de algumas coisas importantes de sua vida. Estou aqui para te ajudar.
- Eu não tô bem?
- Ele sempre disse que seu estado era bom, que não corria riscos e que acordaria quando seu corpo estivesse preparado.
- Alguns anos? Preparado? Eu não me sinto preparado! Cadê minha mãe? Meu Pai?

Nada era mais dolorido e mais confuso. Era como se eu estivesse assistindo 19 televisões ligadas de uma vez. Imagens, sons, esboços de memórias, raiva, dor e amor. Tudo ao mesmo tempo. Tudo em um segundo.
Eu era uma criança. Um adolescente irresponsável. Birrento e carinhoso. Lucas era choros e sorrisos embrulhados com pequenos pneuzinhos em um fralda fedida.

- Céus, você cresceu. Quantos anos você tem? Quantos anos eu tenho? Eu fiquei aqui todo esse tempo?
- Calma, calma...

Enquanto os enfermeiros chegavam cheios de coisas e perguntas pensei que era um homem vazio. Um homem sem presente e um homem sem passado.
Não pensei, com essa cabeça de menino, em tudo o que deixei de viver. Pensei, sim, em tudo o que vivi e não lembrava. Pensei no pouco que lembrava. Eu não era eu. Eu não era ninguém.

Pensei errado.

Fora do hospital Lucas me mostrou o mundo. Mostrou o que sou e o que eu fui. Mostrou quem ele foi para eu perceber quem ele é. Para eu perceber quem eu sou.
Realmente, não sou mais o mesmo. Não sou apenas eu. Agora eu sou dois.