Eu e eu
Conto n˚1
Por Fastolf Brambel
Desafio Caixa Preta III
Branco... tudo branco. Muita luz. Cheiro bom. Tudo branco... Tudo estranho. Branco.
Não via nada, nada além de uma forte luz que me cegava. Sabe quando ligam a luz e você está dormindo? Então... só que branco. Tudo branco.
Rápidamente surgiu um vulto que, agora devagar, vinha em minha direção.
- Rafa? - ele disse.
Quanto mais o vulto se apróximava menos luz entrava. Quanto menos luz entrava mais nítidas as coisas ficavam.
Consgui ver um pouco. Aos poucos um rosto ia se formando enquanto repetia ininterruptamente o meu nome. Um rapaz bonito, preocupado e sorridente ao mesmo tempo.
- Rafa? Rafa, tá me ouvindo?
Olhei no fundo dos seus olhos buscando qualquer sinal de identificação. Ele sorriu, me olhou profundamente e sorriu. Recuei assustado assim que percebi quem é que estava ali. Era eu! Estava ali, eu! Era eu falando comigo mesmo. Um eu imóvel e um eu em pé. Um eu deitado e um eu me olhando. Se olhando, enfim...
Sem muito entender arrisquei um simples palpite:
- Você é um anjo?
Ele riu, e sorriu ainda mais.
- A mãe sempre diz que sim...
- Deus é mulher? - Perguntei entendendo menos ainda
- Não sei, Rafa, não sei.
Ele chorou. Deixou duas lágrimas escorreram. Primeiro veio a do olho esquerdo enquanto ele lentamente tremilicava a boca e o nariz. Depois veio a do olho direito, seguida de outro sorriso e um suspiro profundo.
Tudo doia. Começava a sentir cada membro do meu corpo amortecido.
- Estamos no céu, anjo-eu? - Perguntei enquanto ainda não conseguia ver tudo ao meu redor.
- Você não morreu, Rafa, e eu não sou um anjo. Estamos no hospital.
Me esforcei ao máximo para ver meu próprio corpo deitado, um lençol azul e alguns objetos decorando o que eu entendi ser uma parede.
Tudo agora era mais claro. Quero dizer, menos claro, mais nítido.
Um quarto branco, a cama, uma TV de plasma, cheiro bom, flores, muitas flores, dor no corpo, quadros e eu. Não, eu não... esse rapáz jovem e bonito, forte e sorridente, que não é um anjo mas também não sou eu... Então quem é? Pensei.
- Você tá bem? Deixa só eu apertar esse botãozinho aqui para chamar a enfermeira. Sente dor?
Quanto menos entendia, menos respondia.
- Mas... você?... eu?... por quê?...
- Rafa, sou eu, Lucas...
Meudeusdocéu.
- Lucas?
- Você lembra de mim?
Essa era uma questão difícil. No momento mal lembrava de mim. Lucas, para mim, era um nome e um sentimento. Lucas não era uma lembraça. Talvez fosse um futuro.
- O que aconteceu? - perguntei.
- Você sofreu um acidente, ficou alguns anos em coma. O médico falou que teriamos problemas com a sua memória. Que não lembraria de algumas coisas importantes de sua vida. Estou aqui para te ajudar.
- Eu não tô bem?
- Ele sempre disse que seu estado era bom, que não corria riscos e que acordaria quando seu corpo estivesse preparado.
- Alguns anos? Preparado? Eu não me sinto preparado! Cadê minha mãe? Meu Pai?
Nada era mais dolorido e mais confuso. Era como se eu estivesse assistindo 19 televisões ligadas de uma vez. Imagens, sons, esboços de memórias, raiva, dor e amor. Tudo ao mesmo tempo. Tudo em um segundo.
Eu era uma criança. Um adolescente irresponsável. Birrento e carinhoso. Lucas era choros e sorrisos embrulhados com pequenos pneuzinhos em um fralda fedida.
- Céus, você cresceu. Quantos anos você tem? Quantos anos eu tenho? Eu fiquei aqui todo esse tempo?
- Calma, calma...
Enquanto os enfermeiros chegavam cheios de coisas e perguntas pensei que era um homem vazio. Um homem sem presente e um homem sem passado.
Não pensei, com essa cabeça de menino, em tudo o que deixei de viver. Pensei, sim, em tudo o que vivi e não lembrava. Pensei no pouco que lembrava. Eu não era eu. Eu não era ninguém.
Pensei errado.
Fora do hospital Lucas me mostrou o mundo. Mostrou o que sou e o que eu fui. Mostrou quem ele foi para eu perceber quem ele é. Para eu perceber quem eu sou.
Realmente, não sou mais o mesmo. Não sou apenas eu. Agora eu sou dois.