Epitáfio
Conto n.2
por Felipe Belão Iubel
* foto Alice "Wonderland Girl" Sales
Terça-feira, Doce Chuva
Acordei deitado num gramado coberto com folhas amarelas. Amarelo daqueles de outono e folhas daquelas com cinco pontas. Acordei assustado, pois parecia que eu havia caído de um abismo. Penhasco. Desfiladeiro. Barranco. As palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos, com vozes de outras pessoas. E, de repente, elas estavam todas ao meu redor. Falando coisas boas. Lembranças de meus últimos cinco dias.
Nos meus últimos dias, elas diziam, eu fui feliz. Feliz a ponto de sentir medo da morte pela primeira vez. “Para Ela, esse cheiro é como o de bolo de fubá quentinho com manteiga derretendo.” Café pingado. Queijo quente. Chocolate derretido. As palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos. As vozes me faziam recordar do café de sexta-feira na casa do meu avô. O piso de madeira rangendo sob meus pés. Meu avô arrastando o chinelo, cada dia mais velho. “Mas ele não tem medo da morte.” Não tinha e continua caminhando, as vozes bondosas me diziam.
Na estrada para aquela cidade que guardava o epílogo da minha história, jamais imaginei que um dia escreveria meu epitáfio. Dirigia sem pressa. Com cuidado. Queria chegar com jeito de quem aproveitou a viagem. Parei num daqueles cafés coloniais. Tomei mais uma xícara de café pingado. Experimentei um pedaço do queijo provolone. Comi pão italiano com requeijão quentinho. Segui na estrada. Cinco horas antes do café e mais cinco horas logo depois. Direto. Direito. Sem pressa. Sempre.
A cidade era pequena, as vozes me contavam. Interior. Muito mato. Pouca gente. Fui logo procurar a jornalista que havia encontrado o pedaço de papel. O segundo dia passou rápido ao lado dela. Cabelos castanhos escuros. Olhar claro distante e com aquele contorno cinza que faz o azul parecer mais azul. Sua blusa branca colava no corpo e mostrava um pedacinho do abdômen. Sua calça jeans era simples, barata. Ela tinha perfume de chuva. Doce e úmido. Cada minuto ao seu lado, fazia aumentar meu medo de morrer. As vozes repetiam. Medo. Pavor. Terror. Palavras diferentes chegavam fáceis ao meu pensamento.
No terceiro dia, beijei-a. Beijo logo após a primeira caldereta de chopp. O gosto da cevada do chopp claro que ela pediu se misturava com a do meu chopp escuro. A cidade ficou ainda menor. Minhas mãos passearam pelo seu rosto. Seus cabelos se misturaram em meus dedos. Nossos corpos ficaram próximos e úmidos, colados e apaixonados. Ela me disse que ainda não poderia mostrar o pedaço de papel. As vozes também me contaram que ela gostava do meu jeito de escrever. Um lágrima dela, com cheiro de bolo de fubá e manteiga, caiu na toalha rosa do bar e fomos para o hotel.
Amamos. Amamos a vida e um ao outro. Devagar e com carinho. Com paixão e com força. Sentimos os corpos passeando e descobrindo aquilo que se propôs na sua criação. As vozes me faziam lembrar, como se o pensamento fosse só meu. Elas não invejavam, mas desejavam para elas também todo aquele desejo e paixão. O lençol branco sucumbiu aos pés da cama. Amamos no chão. Beijamos e adormecemos, mantendo o contato de meus lábios grossos e de seu ombro delicado.
Na manhã seguinte, acordamos entre a névoa do meu desejo e o seu cheiro de chuva doce. Ela me mostrou o pedaço de papel. Eu li e chorei. Cada uma das lágrimas, contavam as vozes, representavam uma das vogais usadas naquele pedaço de papel. Minha letra, com certeza. Ela chorou, quando confirmei. Abraçamos um ao outro e nos amamos com saudade. Meu braço percorreu suas curvas como jamais haviam feito. Discutimos sobre rasgar o pedaço de papel enquanto caminhávamos em frente às casas de arquiteturas italiana e alemã antigas. Sonhamos um futuro e as vozes me disseram que mandamos para longe um pouquinho do nosso presente. Meu presente era ela e o pedaço de papel tinha esse texto.
As vozes de outras pessoas me contaram logo depois. Contaram que eu morri no quinto dia, pois dirigi depressa demais. Com pressa de sobra. Com pressa de futuro. Com pressa e com lágrimas. Lágrimas que mancharam o pedaço de papel e embaçaram minha vista. À curva, não resisti. Abismo. Penhasco. Desfiladeiro. Barranco. Meu corpo se perdeu para sempre, logo depois de encontrá-la.
No final do pedaço de papel, meu testamento jazia. Dizia que meu legado era só dela. Cada palavra escrita. Cada vogal com gosto de lágrima. Cada passo com gosto de bolo de fubá e manteiga. Cada lembrança boa de café com leite e chocolate derretido. Cada pedaço meu - de carne e de papel, de sonho e de lembrança – pertencia àquela mulher com perfume de chuva doce.
Doce chuva. E, deitado entre todas aquelas folhas amarelas de outono, as palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos. E as vozes ficaram roucas e sumiram. E o cheiro de chuva doce virou memória. E o pedaço de papel caiu do céu em suas mãos outra vez, pela primeira vez.
Acordei deitado num gramado coberto com folhas amarelas. Amarelo daqueles de outono e folhas daquelas com cinco pontas. Acordei assustado, pois parecia que eu havia caído de um abismo. Penhasco. Desfiladeiro. Barranco. As palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos, com vozes de outras pessoas. E, de repente, elas estavam todas ao meu redor. Falando coisas boas. Lembranças de meus últimos cinco dias.
Nos meus últimos dias, elas diziam, eu fui feliz. Feliz a ponto de sentir medo da morte pela primeira vez. “Para Ela, esse cheiro é como o de bolo de fubá quentinho com manteiga derretendo.” Café pingado. Queijo quente. Chocolate derretido. As palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos. As vozes me faziam recordar do café de sexta-feira na casa do meu avô. O piso de madeira rangendo sob meus pés. Meu avô arrastando o chinelo, cada dia mais velho. “Mas ele não tem medo da morte.” Não tinha e continua caminhando, as vozes bondosas me diziam.
Na estrada para aquela cidade que guardava o epílogo da minha história, jamais imaginei que um dia escreveria meu epitáfio. Dirigia sem pressa. Com cuidado. Queria chegar com jeito de quem aproveitou a viagem. Parei num daqueles cafés coloniais. Tomei mais uma xícara de café pingado. Experimentei um pedaço do queijo provolone. Comi pão italiano com requeijão quentinho. Segui na estrada. Cinco horas antes do café e mais cinco horas logo depois. Direto. Direito. Sem pressa. Sempre.
A cidade era pequena, as vozes me contavam. Interior. Muito mato. Pouca gente. Fui logo procurar a jornalista que havia encontrado o pedaço de papel. O segundo dia passou rápido ao lado dela. Cabelos castanhos escuros. Olhar claro distante e com aquele contorno cinza que faz o azul parecer mais azul. Sua blusa branca colava no corpo e mostrava um pedacinho do abdômen. Sua calça jeans era simples, barata. Ela tinha perfume de chuva. Doce e úmido. Cada minuto ao seu lado, fazia aumentar meu medo de morrer. As vozes repetiam. Medo. Pavor. Terror. Palavras diferentes chegavam fáceis ao meu pensamento.
No terceiro dia, beijei-a. Beijo logo após a primeira caldereta de chopp. O gosto da cevada do chopp claro que ela pediu se misturava com a do meu chopp escuro. A cidade ficou ainda menor. Minhas mãos passearam pelo seu rosto. Seus cabelos se misturaram em meus dedos. Nossos corpos ficaram próximos e úmidos, colados e apaixonados. Ela me disse que ainda não poderia mostrar o pedaço de papel. As vozes também me contaram que ela gostava do meu jeito de escrever. Um lágrima dela, com cheiro de bolo de fubá e manteiga, caiu na toalha rosa do bar e fomos para o hotel.
Amamos. Amamos a vida e um ao outro. Devagar e com carinho. Com paixão e com força. Sentimos os corpos passeando e descobrindo aquilo que se propôs na sua criação. As vozes me faziam lembrar, como se o pensamento fosse só meu. Elas não invejavam, mas desejavam para elas também todo aquele desejo e paixão. O lençol branco sucumbiu aos pés da cama. Amamos no chão. Beijamos e adormecemos, mantendo o contato de meus lábios grossos e de seu ombro delicado.
Na manhã seguinte, acordamos entre a névoa do meu desejo e o seu cheiro de chuva doce. Ela me mostrou o pedaço de papel. Eu li e chorei. Cada uma das lágrimas, contavam as vozes, representavam uma das vogais usadas naquele pedaço de papel. Minha letra, com certeza. Ela chorou, quando confirmei. Abraçamos um ao outro e nos amamos com saudade. Meu braço percorreu suas curvas como jamais haviam feito. Discutimos sobre rasgar o pedaço de papel enquanto caminhávamos em frente às casas de arquiteturas italiana e alemã antigas. Sonhamos um futuro e as vozes me disseram que mandamos para longe um pouquinho do nosso presente. Meu presente era ela e o pedaço de papel tinha esse texto.
As vozes de outras pessoas me contaram logo depois. Contaram que eu morri no quinto dia, pois dirigi depressa demais. Com pressa de sobra. Com pressa de futuro. Com pressa e com lágrimas. Lágrimas que mancharam o pedaço de papel e embaçaram minha vista. À curva, não resisti. Abismo. Penhasco. Desfiladeiro. Barranco. Meu corpo se perdeu para sempre, logo depois de encontrá-la.
No final do pedaço de papel, meu testamento jazia. Dizia que meu legado era só dela. Cada palavra escrita. Cada vogal com gosto de lágrima. Cada passo com gosto de bolo de fubá e manteiga. Cada lembrança boa de café com leite e chocolate derretido. Cada pedaço meu - de carne e de papel, de sonho e de lembrança – pertencia àquela mulher com perfume de chuva doce.
Doce chuva. E, deitado entre todas aquelas folhas amarelas de outono, as palavras chegavam fáceis aos meus pensamentos. E as vozes ficaram roucas e sumiram. E o cheiro de chuva doce virou memória. E o pedaço de papel caiu do céu em suas mãos outra vez, pela primeira vez.
11 comentários:
Mercedes, socorro que não consigo mudar a fonte a justar o tamanho da foto nesse negócio...
Eu arrumo!!! Pelo menos o nome da meu crédito q tá errado! hahaha
Felipe, isso não é um epitáfio! É mais do que isso! É mto mto triste! Deus!
Ah! Não posso arrumar, só a Mer!
coisa linda demais, melisso. me emocionou num dia em que preciso de uma dose extra de cores!
as vezes a vida é isso mesmo, lembrança de cores e cheiros e sons e chuva, perfume doce e úmido indo embora, gosto de café amargando a boca e bolo de fubá quentinho adocicando a alma.
as vezes a vida é isso mesmo, quem é que vai dizer que não?
me orgulho.
eu nao consegui formatar e arrumar nada desse texto. hahaha foi mal.. mas to arrumando agora, alice..
e, tita melissa, se eu te emocionei de algum jeito, valeu a pena ter escrito...
Beijos
e como assim é mais que um epitáfio, wonderland girl?
É mais que um epitáfio porque é um filme da sua vida no fim dela nos seus olhos e nos olhos de todos aqueles que o lêem...
deu pra entender algo do que eu falei!?
Era mais ou menos isso mesmo.
uma coisa de gente maluca...
Além dissom, sempre achei que terça-feira é um dia legal pra morrer...
Estou chegando...
Hoje leio tudo. Estou com a vida toda atrasada.
Beijo
"Chi no la forza di uccidere la realtà non ha la forza di crearla" (Quem não tem a força de matar a realidade não tem a força de criá-la).
A literatura é o mais útil dos objetos inúteis produzidos pelo ser humano para que ele melhor conheça a si, à sociedade a que pertence e ao mundo em que vive.
Adoro !!!
Tomara que a morte seja sempre mesmo em meio a folhas amarelas de outono. E que as palavras fáceis sejam todas boas e roucas...
Lindo, Flipper!
(quem é vinte e poucos anos?)
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