19 de jun. de 2007

Um pequeno Adeus



Conto No. 2
Por Flavia Melissa
Desafio Caixa Preta IV


Eu sempre soube que este dia chegaria. Eu sempre soube, desde a primeira vez em que as crianças da escola me ridicularizaram por eu ser diferente, desde que as meninas rejeitavam meus convites para dançar porque eu era diferente. Algumas me tratavam bem, é verdade, mas eu sempre soube que era por pura piedade. Por pura misericórdia. E, porque não dizer?, por puro medo.

Nunca vou me esquecer, na segunda série, quando a diretora entrou na sala de aula falando sobre diferenças. Nunca vou me esquecer de como me senti envergonhado, de como quis me enfiar debaixo da mesa, de como eu quis sumir. De como enrubesci quando ouvi as crianças cochichando, entre si: “quer dizer então que ele não vai crescer?”. De como me surpreendi, eu mesmo, com aquilo: “quer dizer então que eu não vou crescer?”.

Sempre soube que eu era diferente, oras bolas, sou inteligente o suficiente para perceber que algo de errado havia comigo. Eu tinha essas mãozinhas pequenas, esses pézinhos pequenos e o corpo todo pequeno. A única coisa que não era pequena e que tinha o tamanho normal era minha cabeça. Exatamente do tamanho da cabeça do meu irmão, tanto é que usávamos os mesmos bonés na praia. Eu sempre soube que nunca seria igual a nenhuma outra criança. A nenhum outro adolescente. A nenhum outro adulto.

E é por isso que me juntei ao Circo. Lá, eu me transformei em um pequeno-grande homem, o Menor Homem do Mundo! Lá eu pude conhecer a fama, e o que ela poderia me proporcionar. A cada espetáculo, quando me anunciavam e eu subia na ribalta usando minha calça risca-de-giz e suspensórios e gravata borboleta combinando com tudo, eu me sentia importante. Lá conheci meus melhores amigos. Lá todos eram diferentes como eu e eu quase consegui me sentir normal. Lá todos tínhamos nossas histórias de sofrimento, todos tínhamos nosso histórico de sermos diferentes: a mulher barbada e seus traumas da adolescência, as irmãs siamesas, uma lésbica e a outra não. O homem de dois metros e oitenta de altura que me ensinou que, às vezes, ser pequeno era – literalmente – o menor dos problemas.

Lá eu fui feliz, conheci o mundo e amei mulheres, porque eu era famoso e elas queriam conhecer a sensação de me experimentar. Descobri dotes que eu não sabia que possuía, senti coisas que eu não imaginava que existissem. Lá eu me senti único e especial como nunca havia me sentido, lá eu fui feliz de verdade.

Até que Ele apareceu. Ele, um centímetro menor do que eu. Ele, que tinha até mesmo a cabeça menor do que a minha. Ele, que ganhou o meu lugar, passou a usar as calças risca-de-giz com suspensórios e gravata borboleta combinando ainda menores. Ele, que passou a subir na ribalta junto comigo e me fez perder a graça, qual é a importância do Menor Homem do Mundo quando deixa de ser o menor?

Ele. Ele, que acabo de estrangular dormindo, sem que ninguém percebesse. Ele, meu odiado e ao mesmo tempo amado, pois foi a primeira pessoa que me permitiu experimentar a sensação de olhar alguém de cima, está morto aqui ao meu lado, enquanto escrevo esta carta. Enquanto apertava seu pescoço, imaginei que voltar a ser o Menor Homem do Mundo fosse me satisfazer, mas ledo engano. Eu sempre saberei que sou o segundo menor.

Nada mais me resta, não tenho nenhum bem a ser herdado, a não ser meu banquinho no qual subi tantas vezes para fazer graça em apresentações, no qual devo subir, pela última vez, em breve. A corda já está a postos, esperando pelo meu pescoço. Que meu banquinho fique para o dono do circo, com meus votos de que rapidamente encontre um substituto, sem trocadilhos, à minha altura.

Que escrevam em meu epitáfio: “Aqui jaz o homem para quem um único centímetro foi o suficiente”. Que meu último feito seja o de ter proporcionado a inesquecível experiência do enterro de um anão, para alegrar e divertir aqueles que vivem brincando que, assim como cabeça de bacalhau, nunca haviam visto. E, por favor, me perdoem pela pequenez de meus atos. Quem sabe, morto, eu consiga ser maior do que fui em vida.

Anão Jacinto A. Glória – para sempre, o Segundo Menor.

6 comentários:

Alice Salles disse...

"Quem sabe, morto, eu consiga ser maior do que fui em vida."
Meu deus, coitado dele Flaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
Que dóoooooooooooooooooooo!

Felipe "Tito" Belão disse...

Titaaaaaaaaaaaaaaaa!
mórbido, engraçado, sarcástico, triste...
tudo de bom num texto só, sem esquecer do lado bizarro da vida...

uaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuuu

gostei mesmo

lembrei até daquela história do anão que se matava pq alguém cortou o pé do guarda-roupas e ele achou que tinha crescido...

C. Garofani disse...

HHHHHAHAAHAHAAHAHAHAHHAAHAHA
HAAHAHAAHAH
desculpa nao consegui deixar de rir!!!

pooooooo enterro de anao nao da!!!!!

mas mas mas mas me lembrei do seriado que ando vendo, Carnivale... que tem um anão que É o dono do circo!

anyway... muito muito foda a idéia de puxar o epitáfio pra outra pessoa, e ainda numa idéia tão inusitada! amei!

Anônimo disse...

Eu lembrei de Carnivale o tempo todo!
Genial, Fla! Me diverti e tive pena ao mesmo tempo.
E o nome dele, como o do meu, já havia traçado o destino do coitado!

Amei.

Unknown disse...

Novamente gostei ...

Continuo lhe admirando, continue assim... tem um Dom pra escritora...
bj

Deca disse...

AMEI!
Mas sou suapeita, certo?
haha
Aliás...tornei-me viciada nestes textos de vocês...
espero chegar lá um dia...