Conversadeira da Sé - III
Quando tudo começou, eu juro ainda era inocente. Eu queria mesmo ajudar toda aquela gente sem rumo e sem esperança. Nem tudo foram receitas de “dor de barriga para merecedores”. Eu inventei simpatias sim. Tá, foram inventadas. Mas todas elas com intenção de ajudar. O universo está careca de saber que as pessoas acreditam em simpatia, e que tudo o que se faz acreditando dá certo. Eu já salvei pessoas assim. A única coisa necessária é que os envolvidos participem do pseudo-ritual. Assim como um macumbeiro mata uma galinha preta, um católico acende uma vela na igreja, um evangélico joga as mãos para cima e ora, uma bruxa cozinha seus ingredientes numa panela velha de ferro, o doente e a pessoa que quer muito que ele fique bom repetem cuidadosamente o ritual que eu ensino e materializam seu desejo. É assim que acontece desde que o mundo é mundo. Lembra o que Jesus dizia quando fazia um milagre? “ A tua fé te curou”. Ha! Ele ensinou o segredinho…eu só ponho em prática. E isso não faz de mim uma milagreira ou uma trambiqueira. Só um instrumento da fé ou da falta dela. Todo esse povo desesperado, no sentido exato da palavra: des-esperado = sem-esperança. Todos eles, eu e uma folha de papel. Tudo o que é preciso para operar um milagre.
Mas tudo corria como todos os dias. Velhos babões querendo me mostrar uma ferida no pinto, lésbicas desesperadas simulando um problema de mama, pessoas querendo ser tocadas seja onde for, só para ter um minuto de uma mão quente e cuidadosa encostada em sua pele. E eu. Ai ai ai. Eu me presto, eu sei. Mas eles precisam, então na verdade não me custa. Podia ser muito pior. Muito pior.
Então ele entrou pela porta de lona da minha “sala privé” e eu não vi seu rosto. A luz que vinha lá de fora silhuetou seu corpo e ofuscou meus olhos. A figura grande e forte parecia mais uma aparição e eu quase pude ouvir uma música dramática ao fundo, sincada com a entrada triunfal. Depois, o som da lona; SHLEPT! Mais um passo à frente e ele tira o chapéu, curva o corpo como a reverenciar uma rainha, levanta-se devagar olhando dentro dos meus pensamentos. Eu, estarrecida, esperava por uma palavra, um som, um gemido, qualquer coisa que me mostrasse quem era e de onde vinha aquela figura mágica.
- Pois não? – eu disse com a voz um pouco trêmula, sem ter certeza se devia mesmo me pronunciar.
- Hadevina?
- Quem pergunta?
- Posso me sentar?
Ele perguntou isso já tomando posse do banquinho à minha frente. O olhar daquele homem chegava a doer. Era profundo como se ele ouvisse os meus pensares, como se soubesse os meus quereres, como se já soubesse quem eu era. Num primeiro momento – em quase todos na verdade – eu pensei que seria presa ou algo assim.
- Parece que já sentou. O seu problema seria…?
- O mundo. O planeta inteiro. Essa confusão global que desespera as pessoas. Esse caos que tomou conta de todos. Essa pobreza que está mais na alma do que no prato de comida.
- Hm…sei. Quando isso começou?
Ele deu um meio sorriso que me gelou os ossos.
- Há mais tempo do que se pode contar.
- Bom, eu só precisava saber se era uma novidade ou um tormento antigo. Como foi a sua infância?
- A minha infância tem muito pouco a ver com isso.
- Sei…se recusar a falar da sua origem não é a melhor forma de conduzir a vida. Me conta da sua mãe…
- Minha mãe? O que tem a minha mãe?
- Como ela era?
- Uma santa, por assim dizer.
Eu fiquei olhando para ele esperando mais revelações e nada. Silêncio absoluto. Tentei me livrar logo.
- Bom…Nós podemos conversar várias vezes por semana, se você concordar, para saber de onde vem todo esse tormento e onde esta “santa” entra na história…
- Sei…Mas por que?
- Para te ajudar.
- A que?
- Você não veio aqui procurar ajuda para sua aflição?
- Ah. Sim, claro.
- Hoje é segunda. Você pode voltar na quarta no mesmo horário.
- Claro, posso sim. Mas preciso que você faça uma coisa para mim.
- O que seria?
- Uma composição. Você compõe?
- O que?
- Mágica, milagre.
Outra vez ,achei que aquele homem era policial e queria descobrir se eu invento remédios perigosos para enganar pessoas.
- Qué isso…eu faço uns chás para algumas mazelas. Você é da saúde pública ou algo assim? Olha moço, eu tenho bom coração. Não estou aqui para prejudicar ninguém não! As pessoas me pedem ajuda e eu ajudo. Só isso.
Ele colocou as duas mão enormes sobre a minha mesa improvisada e aquele gesto também congelou meus ossos. A mesa tremeu, o chão pareceu tremer, a água na garrafa que está sempre comigo fez uma tsunami e o meu sangue borbulhou dentro de mim.
- Hadevina, calma!
- Quem é você? O que você quer aqui?
- Eu preciso que você componha.
- Como assim? Compor o que?
- Vá para sua casa e pense numa magia para paz de espírito e nobreza.
- Ai meu deus, você é maluco, pode ir embora.
- Vou. Mas eu vou voltar quarta-feira no mesmo horário. E você vai escrever para mim uma mágica, uma simpatia, um milagre -- chame como chamar -- para trazer paz às pessoas. Pense e faça isso.
- Ah tá. Vou achar a cura do mundo! Ta bom!
- Exatamente. Faça isso.
Ele não era desse planeta. Que lunático! Entrar na minha tenda no meio do dia com um sol de rachar para ocupar meu tempo com coisa nenhuma. Devia estar procurando uma sombra para descansar e inventou essa história absurda de milagre…mágica…simpatia. Curar o mundo…imagina!
Ele levantou e saiu como entrou. Todo aquele corpanzil silhuetado pelo sol lá fora, cegando meus olhos. Colocou o chapéu, parado ali na porta, deu mais uma olhada para mim e aquele sorriso de tremer a alma.
- Espero que você tenha um guarda-chuva.
Eu só levantei a sobrancelha, já que aquela frase era o cúmulo da falta de assunto. Estava um dia maravilhoso, sem a menor previsão de chuva para a próxima semana. Ele largou a lona no seu estilo cowboy entrando no saloon: SHLEPT!
Eu ri e balancei a cabeça pensando nos loucos que me aparecem, quando outro estrondo fez tudo tremer: um trovão, seguido de uma tempestade incrível! Eu levantei correndo da mesa e abri a porta da tenda para ver se era verdade, sem entender de onde vinha tanta água. As pessoas corriam pela Praça da Sé tentando encontrar um abrigo e o homem misterioso do chapéu havia desaparecido. Fechei a porta e rezei para a tempestade passar logo ou minha tenda resistir a ela.
SHLEPT! Aprendi a fechar a lona com estilo.
Mas tudo corria como todos os dias. Velhos babões querendo me mostrar uma ferida no pinto, lésbicas desesperadas simulando um problema de mama, pessoas querendo ser tocadas seja onde for, só para ter um minuto de uma mão quente e cuidadosa encostada em sua pele. E eu. Ai ai ai. Eu me presto, eu sei. Mas eles precisam, então na verdade não me custa. Podia ser muito pior. Muito pior.
Então ele entrou pela porta de lona da minha “sala privé” e eu não vi seu rosto. A luz que vinha lá de fora silhuetou seu corpo e ofuscou meus olhos. A figura grande e forte parecia mais uma aparição e eu quase pude ouvir uma música dramática ao fundo, sincada com a entrada triunfal. Depois, o som da lona; SHLEPT! Mais um passo à frente e ele tira o chapéu, curva o corpo como a reverenciar uma rainha, levanta-se devagar olhando dentro dos meus pensamentos. Eu, estarrecida, esperava por uma palavra, um som, um gemido, qualquer coisa que me mostrasse quem era e de onde vinha aquela figura mágica.
- Pois não? – eu disse com a voz um pouco trêmula, sem ter certeza se devia mesmo me pronunciar.
- Hadevina?
- Quem pergunta?
- Posso me sentar?
Ele perguntou isso já tomando posse do banquinho à minha frente. O olhar daquele homem chegava a doer. Era profundo como se ele ouvisse os meus pensares, como se soubesse os meus quereres, como se já soubesse quem eu era. Num primeiro momento – em quase todos na verdade – eu pensei que seria presa ou algo assim.
- Parece que já sentou. O seu problema seria…?
- O mundo. O planeta inteiro. Essa confusão global que desespera as pessoas. Esse caos que tomou conta de todos. Essa pobreza que está mais na alma do que no prato de comida.
- Hm…sei. Quando isso começou?
Ele deu um meio sorriso que me gelou os ossos.
- Há mais tempo do que se pode contar.
- Bom, eu só precisava saber se era uma novidade ou um tormento antigo. Como foi a sua infância?
- A minha infância tem muito pouco a ver com isso.
- Sei…se recusar a falar da sua origem não é a melhor forma de conduzir a vida. Me conta da sua mãe…
- Minha mãe? O que tem a minha mãe?
- Como ela era?
- Uma santa, por assim dizer.
Eu fiquei olhando para ele esperando mais revelações e nada. Silêncio absoluto. Tentei me livrar logo.
- Bom…Nós podemos conversar várias vezes por semana, se você concordar, para saber de onde vem todo esse tormento e onde esta “santa” entra na história…
- Sei…Mas por que?
- Para te ajudar.
- A que?
- Você não veio aqui procurar ajuda para sua aflição?
- Ah. Sim, claro.
- Hoje é segunda. Você pode voltar na quarta no mesmo horário.
- Claro, posso sim. Mas preciso que você faça uma coisa para mim.
- O que seria?
- Uma composição. Você compõe?
- O que?
- Mágica, milagre.
Outra vez ,achei que aquele homem era policial e queria descobrir se eu invento remédios perigosos para enganar pessoas.
- Qué isso…eu faço uns chás para algumas mazelas. Você é da saúde pública ou algo assim? Olha moço, eu tenho bom coração. Não estou aqui para prejudicar ninguém não! As pessoas me pedem ajuda e eu ajudo. Só isso.
Ele colocou as duas mão enormes sobre a minha mesa improvisada e aquele gesto também congelou meus ossos. A mesa tremeu, o chão pareceu tremer, a água na garrafa que está sempre comigo fez uma tsunami e o meu sangue borbulhou dentro de mim.
- Hadevina, calma!
- Quem é você? O que você quer aqui?
- Eu preciso que você componha.
- Como assim? Compor o que?
- Vá para sua casa e pense numa magia para paz de espírito e nobreza.
- Ai meu deus, você é maluco, pode ir embora.
- Vou. Mas eu vou voltar quarta-feira no mesmo horário. E você vai escrever para mim uma mágica, uma simpatia, um milagre -- chame como chamar -- para trazer paz às pessoas. Pense e faça isso.
- Ah tá. Vou achar a cura do mundo! Ta bom!
- Exatamente. Faça isso.
Ele não era desse planeta. Que lunático! Entrar na minha tenda no meio do dia com um sol de rachar para ocupar meu tempo com coisa nenhuma. Devia estar procurando uma sombra para descansar e inventou essa história absurda de milagre…mágica…simpatia. Curar o mundo…imagina!
Ele levantou e saiu como entrou. Todo aquele corpanzil silhuetado pelo sol lá fora, cegando meus olhos. Colocou o chapéu, parado ali na porta, deu mais uma olhada para mim e aquele sorriso de tremer a alma.
- Espero que você tenha um guarda-chuva.
Eu só levantei a sobrancelha, já que aquela frase era o cúmulo da falta de assunto. Estava um dia maravilhoso, sem a menor previsão de chuva para a próxima semana. Ele largou a lona no seu estilo cowboy entrando no saloon: SHLEPT!
Eu ri e balancei a cabeça pensando nos loucos que me aparecem, quando outro estrondo fez tudo tremer: um trovão, seguido de uma tempestade incrível! Eu levantei correndo da mesa e abri a porta da tenda para ver se era verdade, sem entender de onde vinha tanta água. As pessoas corriam pela Praça da Sé tentando encontrar um abrigo e o homem misterioso do chapéu havia desaparecido. Fechei a porta e rezei para a tempestade passar logo ou minha tenda resistir a ela.
SHLEPT! Aprendi a fechar a lona com estilo.
...Continua
6 comentários:
gente eu imagino que essa tenda tenha um cheirão de ranço!
de suor de gente, de coisa e coisarada, de chuva, de poeira, de células mortas... que lugar pra um bebê!
adorando, adorando!
E eu que esqueci completamente do Zé enquanto escrevia?
Falei pra Fla: não esquece que ela ta grávida.
E ela respodeu: NASCEU! É O ZÉ! hahahahaha
Espetacular, Mercedes!
A cura pro mundo!
Erva do alem
ahhhhhhhhhhhhh
que homem!
pera la que logo é minha vez de postar
ele era jezuuuuizzz???
Nossa... que homem, hein?!?!?! Eu, hein? q medo dessas pessoas misteriosas... hahaha
E o Zé, tadinho, esquecido no berço de madeira... huahauha
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