25 de set. de 2007

Conversadeira da Sé - IV



Por Flavia Melissa



Naquela noite eu dormi mal à beça. Achei que talvez tivesse sido a rabada que comi na janta, mas no fundo no fundo eu sabia que tinha sido aquele homem. Depois que ele foi embora, o mundo caiu literalmente sobre a minha cabeça; a água invadiu a tenda e só deu tempo de pegar minha bolsa e sair correndo dali com o Zé no colo, na direção do orelhão mais próximo, único lugar coberto disponível.

Foi uma tempestade de 5 minutos; depois disso, céu azul. Essa é uma das coisas engraçadas da vida, quando se quer que o tempo passe logo ele se arrasta, quando se quer que ele passe devagar ele voa. Foram os cinco minutos mais longos da minha vida e, quando acabaram, achei que pela minha tenda tivesse passado um furacão: todos os meus potes com as minhas ervas e os meus santinhos jogados no chão. Foi uma trabalheira conseguir organizar tudo aquilo, graças a Deus o moço dos incensos me ajudou a recolher tudo.

Ok, to me estendendo demais. Eu sei, tenho essa mania. Porque mais me auto-intitularia Conversadeira? Falo pelos cotovelos desde pequena, acho que isso é assim um pouco por causa da minha mãe, doida de pedra. Quando eu era pequena eu falava com ela e ela não me respondia, então eu conversava comigo mesma prá passar o tempo. Então eu tenho essa mania de falar à beça, e foi meio falando à beça que comecei a conversar com aquela mulher que se sentou ao meu lado no ônibus na volta para casa.

- O que você acha que precisaria acontecer prá salvar o mundo? – Eu perguntei, e a moça ficou me olhando de um jeito muito estranho. Acho que ela não estava preparada prá minha pergunta, porque ficou de boca aberta alguns segundos e depois me disse:
- Prá salvar o mundo? Precisaria explodir uma bomba atômica e começar tudo de novo.

Bomba atômica não estava dentre as minhas habilidades de Conversadeira da Sé. Não, uma coisa era emplastro, chá e pasta de requeijão vencido misturado a orégano da marca mais barata que eu encontrasse no mercado. Mas bomba atômica? Eu nunca tinha entendido nada de bomba, nem daquelas de chocolate que minha mãe fazia quando se empolgava com cozinha e passava dias e noites em claro cozinhando. Eu tinha que arrumar outra saída, pois o moço tinha sido enfático em afirmar que voltaria na quarta, mesmo horário.

Quando cheguei em casa a Adalgiza, minha vizinha, estava sentada no ponto de ônibus, esperando o marido voltar do trabalho. Adalgiza é meio doida mas é até muito boa pessoa, até que gosto de gente doida então não me importo com as doidices dela. É ciumenta que nem o diabo, logo que me viu descendo do ônibus veio me pedir uma receita que fizesse o marido ser sempre fiel a ela, emendando que não conseguia acreditar que ele dizia a verdade toda vez que ficava fazendo serão no escritório às sextas-feiras. Tadinha da Adalgiza, dei a receita e, como não tinha mais nada que fazer mesmo, engatei um papo contando do novo cliente que aparecera na tenda naquela tarde.

Quando terminei de contar a história ela foi logo dizendo:

- Salvar o mundo? Impossível! Não dá prá salvar o mundo, prá salvar o mundo antes você teria que salvar todas as pessoas do mundo. E tem gente que não tem salvação!

Entrei em casa me sentindo desolada. Realmente, salvar o mundo era uma missão impossível. Na verdade, eu não acreditava que o mundo pudesse ser salvo, a moça do ônibus e Adalgiza também não acreditavam, aparentemente só aquele cara achava que o mundo poderia ter salvação. E se o mundo não acredita que possa ser salvo, como é que eu vou fazer? Como eu disse, é só com fé que a coisa funciona.

Então eu dormi mal à beça. Foi assim que eu comecei falando e me perdi em todos os detalhes sem importância que aconteceram depois que o moço saiu da tenda e caiu o mundo sobre a minha cabeça. Tive uns sonhos esquisitíssimos, com a minha mãe se jogando pela janela, se enforcando, cortando os pulsos, tomando uma overdose de remédios... E o moço aparecia a cada cena e me dizia, com aquele olhar penetrante: “salve o mundo e salvará a si mesma”.

E eu? Será que eu acreditava que o mundo pudesse ser salvo? Pior do que isso: será que eu achava que eu poderia ser salva? Será que eu deveria achar que eu tinha algum motivo para ter que ser salva? Salva do quê, mesmo?

Foi pensando nisso que ouvi aquele barulho novamente, SHLEPT!, na porta da minha tenda. Era quarta-feira, e era o mesmo horário.
continua...

9 comentários:

Anônimo disse...

Eeeee! Clap clap clap!

Se a regra é ferrar o próximo, você foi genial! hahahahah!
Adorei Melissinha!


Beijo

Flavia Melissa disse...

mal aê!!!
who's next?

C. Garofani disse...

HAHAHA acabei de falar pra Mê, to gostando mais dessa historia do que eu imaginava que ia gostar!

Alias acho que é minha preferida so far! :D

Anônimo disse...

Acho que a minha também.
Se a regra aquela "DO NOT AVACALHAIVOS" funcionar, acho que teremos uma grande história!

Anônimo disse...

Quem se arrisca na cura do mundo?

Se for rolar mistura, coloquem cerveja e um pouco de rabo-de-galo junto.

Comigo funciona.

hahaha

Do além.

Alice Salles disse...

AGORA SOU EU!

ta, pera la que eu to inspirada...

Felipe "Tito" Belão disse...

aff.. essa é minha preferida também.. e essa parte é a minha preferida..
que ritmo que elegância que eloquência...
e a adalgiza é genial..

foi praticamente um ensaio sobre as voltas do pensamento em um momento de filosofar sozinho para não contar para ninguém depois...

genial, Tita!!!!!!!

Fernanda S. disse...

hauhauaha... jogou tudo no ventilador de uma vez!!! Tadinha da Alice... ela não merecia ser a próxima!
Mas, ficou mto bom, Flá.. como sempre!!!!
Amooooo

Anônimo disse...

muito interessante