Conversadeira da Sé - I
por Felipe Belão Iubel
Vou direto ao ponto e fiquem sabendo que a história até fica boa, mas só depois. Meu nome é Hadevinda.
Terrível, eu sei.
Culpa da minha mãe, mas a vida a castigou e, antes de contar essa parte, quero que todo mundo entenda que não sou insensível. Então, com vocês sabendo disso, eu confesso. Minha mãe se matou a meu pedido. Ela tinha surtos de psicose e de depreciação moral aguda e eu estudava para passar no vestibular de psicologia.
Eu não passei e ela surtou. Foi aí que começou minha carreira de conversadeira. Ela surtou feio mesmo. Tive que segurá-la para que ela não sujasse a sala toda com suas próprias fezes.
Terrível, eu sei.
Então, eu cansei e comecei a conversar enquanto ela continuava surtando. Chegou uma hora que eu disse, com a maior calma do mundo:
- Mãe, quer morrer? Pois trata de se matar logo.
Ela obedeceu e eu descobri meu talento: a melhor conversadeira com 100% de resultados literais. Você pode achar pouco, mas não ligo. Afinal, minha vida estava uma merda mesmo. Eu não conhecia meu pai, havia levado bomba no vestibular por só uma vaga – alguma coisa relacionada com cotas que eu não entendi – e minha mãe me deixou só com dívidas. Ah! Também desconfiava que eu estava grávida, o que acabou se confirmando, mas o pai da criaturinha sumiu, também atendendo aos meus conselhos de conversadeira. “Por que você não some da minha vida?”
Resumindo: pai que não conheço, mãe suicida, dívidas, criança no bucho, fodida e sem perspectivas de faculdade.
Decidi exercer a profissão de psicóloga sem diploma mesmo e só mudei o nome para não parecer algo ilegal. E, como queria estar mais perto do povão, chamei meu negócio de Barraquinha da Conversadeira.
Terrível, eu sei.
Estabeleci ponto ali na Praça da Sé mesmo. Cidade grande é uma beleza pra essas coisas, porque sempre tem alguém ou mais burro ou mais desesperado que você para procurar esse tipo de serviço.
Comecei humilde. Cobrava um quilinho de qualquer comidinha, cozida ou crua, para começar. Na verdade, eu não tinha balança e pesava no olho, naquele estilo canastrão dos filmes estrangeiros. O pessoal achava que eu tinha algum dom e sempre tentava acertar no peso com medo que eu descobrisse caso fosse mentira.
E a verdade era que eu ficava fodida com os problemas deles. A maioria era mulher querendo o que fazer para segurar um “homem” ou para reconquistar um “homem” ou para encontrar um “homem”. Falo “homem” porque esses clientes terceirizados e coitados, como eu gosto de chamar, nem mesmo nome tinham. Minha resposta de conversadeira era sempre a mesma:
- Trate de arrumar outro antes desse que você quer.
Elas pareciam felizes e me indicavam para as amigas e eu só as deixava falar. Elas precisavam disso e ouviam meu conselho pré-fabricado no final.
- Essa menina sabe mesmo das coisas.
Ouvia isso muito.
Porém, o trabalho complicava quando aparecia algum homem para conversar comigo. Isso porque eles vinham fodidos de verdade. Ou com alguma doença que eles queriam que eu visse em lugares do corpo que eu preferia não olhar. Eu estava no sétimo mês de gravidez e foi aí que comecei minha carreira de compositora.
Compositora de receitas, claro.
Sempre inventava um ungüento ou uma simpatia ou um chá.
Geralmente coisa inofensiva e só para aqueles que me contavam uma história filha-da-puta de verdade, da parte do contador mesmo, eu indicava chá pelando de pêlo pubiano.
Tiro e queda, eles sempre voltavam achando que a conversadeira resolveu e traziam mais comida para eu não contar pra ninguém que beberam o próprio pentelho.
Pro resto, eu dava camomila, erva-doce, malva, quebra-pedra, alho, limão, açúcar queimado, casca de laranja e maça, capim-cidreira, mel doce, mel amargo, picão, marcela, sal grosso, sal fino, louro, nós moscada, pimentinha do reino, orégano, cominho, um pouquinho de detergente de cozinha, sal de frutas e pedra de rio.
Só com esses ingredientes eu fazia uma combinação de chás e ungüentos sem fim. E é bem isso que o povo quer.
Terrível, eu sei.
Mas ninguém gosta de ir pra casa sem receita.
Vou direto ao ponto e fiquem sabendo que a história até fica boa, mas só depois. Meu nome é Hadevinda.
Terrível, eu sei.
Culpa da minha mãe, mas a vida a castigou e, antes de contar essa parte, quero que todo mundo entenda que não sou insensível. Então, com vocês sabendo disso, eu confesso. Minha mãe se matou a meu pedido. Ela tinha surtos de psicose e de depreciação moral aguda e eu estudava para passar no vestibular de psicologia.
Eu não passei e ela surtou. Foi aí que começou minha carreira de conversadeira. Ela surtou feio mesmo. Tive que segurá-la para que ela não sujasse a sala toda com suas próprias fezes.
Terrível, eu sei.
Então, eu cansei e comecei a conversar enquanto ela continuava surtando. Chegou uma hora que eu disse, com a maior calma do mundo:
- Mãe, quer morrer? Pois trata de se matar logo.
Ela obedeceu e eu descobri meu talento: a melhor conversadeira com 100% de resultados literais. Você pode achar pouco, mas não ligo. Afinal, minha vida estava uma merda mesmo. Eu não conhecia meu pai, havia levado bomba no vestibular por só uma vaga – alguma coisa relacionada com cotas que eu não entendi – e minha mãe me deixou só com dívidas. Ah! Também desconfiava que eu estava grávida, o que acabou se confirmando, mas o pai da criaturinha sumiu, também atendendo aos meus conselhos de conversadeira. “Por que você não some da minha vida?”
Resumindo: pai que não conheço, mãe suicida, dívidas, criança no bucho, fodida e sem perspectivas de faculdade.
Decidi exercer a profissão de psicóloga sem diploma mesmo e só mudei o nome para não parecer algo ilegal. E, como queria estar mais perto do povão, chamei meu negócio de Barraquinha da Conversadeira.
Terrível, eu sei.
Estabeleci ponto ali na Praça da Sé mesmo. Cidade grande é uma beleza pra essas coisas, porque sempre tem alguém ou mais burro ou mais desesperado que você para procurar esse tipo de serviço.
Comecei humilde. Cobrava um quilinho de qualquer comidinha, cozida ou crua, para começar. Na verdade, eu não tinha balança e pesava no olho, naquele estilo canastrão dos filmes estrangeiros. O pessoal achava que eu tinha algum dom e sempre tentava acertar no peso com medo que eu descobrisse caso fosse mentira.
E a verdade era que eu ficava fodida com os problemas deles. A maioria era mulher querendo o que fazer para segurar um “homem” ou para reconquistar um “homem” ou para encontrar um “homem”. Falo “homem” porque esses clientes terceirizados e coitados, como eu gosto de chamar, nem mesmo nome tinham. Minha resposta de conversadeira era sempre a mesma:
- Trate de arrumar outro antes desse que você quer.
Elas pareciam felizes e me indicavam para as amigas e eu só as deixava falar. Elas precisavam disso e ouviam meu conselho pré-fabricado no final.
- Essa menina sabe mesmo das coisas.
Ouvia isso muito.
Porém, o trabalho complicava quando aparecia algum homem para conversar comigo. Isso porque eles vinham fodidos de verdade. Ou com alguma doença que eles queriam que eu visse em lugares do corpo que eu preferia não olhar. Eu estava no sétimo mês de gravidez e foi aí que comecei minha carreira de compositora.
Compositora de receitas, claro.
Sempre inventava um ungüento ou uma simpatia ou um chá.
Geralmente coisa inofensiva e só para aqueles que me contavam uma história filha-da-puta de verdade, da parte do contador mesmo, eu indicava chá pelando de pêlo pubiano.
Tiro e queda, eles sempre voltavam achando que a conversadeira resolveu e traziam mais comida para eu não contar pra ninguém que beberam o próprio pentelho.
Pro resto, eu dava camomila, erva-doce, malva, quebra-pedra, alho, limão, açúcar queimado, casca de laranja e maça, capim-cidreira, mel doce, mel amargo, picão, marcela, sal grosso, sal fino, louro, nós moscada, pimentinha do reino, orégano, cominho, um pouquinho de detergente de cozinha, sal de frutas e pedra de rio.
Só com esses ingredientes eu fazia uma combinação de chás e ungüentos sem fim. E é bem isso que o povo quer.
Terrível, eu sei.
Mas ninguém gosta de ir pra casa sem receita.
Continua...
11 comentários:
TAlvez ela seja mais louca do que eu! hahaha.
Eu serei eu?
eu acho que é menos louca que a história da sogra...
hahahahahah
sorry, mercedes...
Deus do céu!
Não sabia que morava gente tão tosca, louca e cheia de idéias na cabeça do Felipe! hahahha Adorei! quem é o proximo?
essa mulher não é louca.. ela só sofreu um pouco e a selvageria toda parece natural pra ela... depois... perto DA SOGRA não é nada... hahahahhahaha
Uma beleza de história, parecida com a de muito psicólogo que eu já cruzei. Que também não deixa cliente sair sem receita.
Hahha!
eu também conheço desses.
Felipe, para de falar da sogra, caramba! hahahahah!
parei...ops
que maravilha, adoro!!!
e confesso que também associei direto aos psicólogos ahahahahaha
preciso procurar mas... tenho uma imagem dessa mulher, feita há muitos anos atrás, assim que encontrar...
Adorei... é bem doido, mas real ao mesmo tempo, afinal, quem não precisa de uma boa orelha para ouvir de vez em quando??? hahaa
Bem interessante!
toc! toc! toc! anyone in home?
Quer dizer que vcs começam com esses textinhos de forma despretensiosa, viciam a gente e somem!!!!
Nã nã ni nã não!!!! Cadê o fim da história das conversadeiras??
Será que o tal homem matou a tal mulher e depois matou vcs um por um para que o final apoteótico não fosse revelado????? Ugh!
Eu quero! Eu quero! Eu quero!!! Pôxa, só descobri o clubinho quando já estava fechado??? Isso sim é o cúmulo do atraso!!!!!
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