25 de mai. de 2007

Eu ouvi direito?

Conto nº 01
por Alice Salles
Desafio Caixa Preta III



“Eu ouvi direito?”

O relógio no meu celular marcava quinze para as quatro horas da tarde. Ele tinha pânico que esse momento chegasse, era quase um princípio para o caos em seu sistema. Sistema... Essa palavra não era usada há muito tempo naquela casa. Não havia sistema pra nada, nem para esquecer e nem para lembrar daquele dia que o nosso irmão parou no tempo pra observar tudo daquele prisma ilusório que ele sempre estimou tanto. Havia uma neura no ar, um certo peso e um arco-íris ao mesmo tempo, que segurava os ânimos do nosso irmão caçula. Ele tinha dois anos quando tudo aconteceu.

“Você ouviu direito, amor.”

Acordar não era o verbo.

“Ele não sabe de nada, ele parou no tempo!”

“O último beijo dele foi o beijo que eu lasquei no seu rosto risonho na minha formatura!”

“Não me lembro, anjo...”

“Você era só olhos, pequeno...”

Sempre foi assim em casa. Nomes pra tudo, nomes pro amor da gente.

Nosso irmão do meio era alguém esquecido na cama, não no peito. Nós não sabíamos o que fazer, mas o fizemos. Nos levantamos da mureta da frente de casa e entramos, muitas pessoas estavam presentes naquele dia. Era uma tarde fria como frio era o quarto dele.

Meu pequeno liderou o caminho, ele tem cabelos castanhos bem claros, lisos e tem as costas largas. É um moço tão lindo que teria me apaixonado por ele se não fosse sua irmã-mãe-amiga...

Nosso irmão que viveu tanto tempo longe estava lá deitado e seus olhos estavam abertos, ai como era bom ver seus olhos verdes cintilantes! O verde observava o movimento dos aparelhos, dos sinais dos bips, da cortina com o vento frio que soprava. As cortinas eram azuis. Ele estava sozinho e eu passei na frente do nosso pequeno.

Seus olhos se apertaram e olharam para mim.

Ele tinha a barba feita porque tinha uma enfermeira que cuidava disso. Seu cabelo também estava bem cortado, castanho escuro, um pouco crespo e a pele com aquele tom que já havia sido moreno de matar de inveja e agora era pálido e tinha o rosto fino de tão magro. Resultado de tantos anos vivendo por aparelhos. Todo o arrependimento por mantê-lo ali havia sumido. Meus olhos já estavam esbanjando lágrimas pra todos os lados, meu pequeno veio do outro lado da cama e quieto o observou.

“Você se lembra dele? Era pequenino...”

“Você está diferente, flor...”

“Estamos mais velhos...”

“Estamos?”

Nosso pequeno suspirou, soltou uma lágrima seca de doer a garganta.

“Vocês estão... irmão.”

Será que ele ainda tinha aquele sorriso gostoso? O dentinho da frente ainda lascado por causa de uma queda quando tinha dez anos, os lábios que se abriam por completo, mostrando os molares, mostrando sua felicidade por estar pelo menos vivo. Seus olhos verdes...

“Então não foi sonho!”

Ele estava feliz e eu não parava de sorrir. Meu corpo sorria e queria dançar ao lado dele, com ele e com nosso bebê naquele quarto que não era mais frio. Nosso pequeno também tinha se contagiado com tudo aquilo...

“Sonho!”

“Sonho?”

“Não foi, minha flor linda! Me tira daqui porque eu não sonhei!”

Ele tentava se levantar da cama e eu o abraçava. Era um encontro de corpos daquelas almas que por ventura se esbarraram em seu sonho, na sua cama, nos seus olhos verdes...

“Você também não era sonho...”

Nosso pequeno virou nosso grande amor e tudo ali era festa. Ele era alguém novamente, com lembranças inventadas e com uma vida inteira pra se conhecer, era um adolescente adulto o suficiente para ser responsável por todos nós. Aqueles minutos viraram troféu e mais uma vez nosso pequeno salvou o dia...

Foi pra rua buscar flores, foi pro supermercado trazer todas as marcas de chocolate novas, de todos os tipos, com todos os recheios e de todos os formatos pro irmão conhecer. Foi à locadora e pegou todos os filmes importantes desses últimos catorze anos... Trouxe refrigerante, pipoca e beijinho, que ele sabia que eu amava.

Ao se olhar no espelho, nosso irmão recentemente renascido de seu longo sono viu nos seus olhos o dia do acidente e agradeceu por uma chance depois desse longo tempo, depois dessas tentativas frustradas de seus pais falecidos, de sua irmã flor e de seu irmão sereno. Agradeceu tanto que chorou durante horas e entre soluços, abraços e chocolate me dando de volta a única felicidade ainda restante em minha vida... Aquela pela que se vale mantê-la.

7 comentários:

Anônimo disse...

Ai meu deus. Está cada vez mais difícil comentar aqui.


"Então não foi sonho?" Que aflição deve ser isso.
Meu tio levou um tiro de um funcionário que tinha sido demitido. O cara voltou com muita raiva e atirou nele. No pescoço. Passou meses em coma. Ele diz que ouvia as conversas no quarto do hospital. Repetiu muitas delas.
Já pensou? eu nem quero pensar.

Alice Salles disse...

É, foi nisso que eu pensei.
O cara que fica em coma assim mto tempo deve ter lembranças de coisas que sonhou ou que por ventura ouviu em volta. Não é possível não existir nenhuma memória de nada.... Mesmo meio que dormindo...

Beijinhos

Rodrigo Gameiro disse...

Nossa!!

Quanto Amor!!

Pais falecidos no final!! PUNK!!!

Fastolf disse...

aiai...
tudo muito triste por aqui.
hahahha

Felipe "Tito" Belão disse...

eu achei excelente...

sempre fiquei pensando nessa tristeza e nos sons nesses momentos..

vc traduziu tudo de um jeito lindo.. que é só seu mesmo...

Beijos

C. Garofani disse...

ih, to confusa... to confusa!
.
vou ler de novo.

Anônimo disse...

Por que eu adorooo coisas tristes????Alguém me explica???
Lindo Alice!!!