5 de jun. de 2007

EPITÁFIO


Por Mercedes Gameiro
Conto nº2




Meus queridos,

Juro que, se eu pudesse, entraria numa máquina de evaporar.
Se tal máquina existisse, ela evaporaria pessoas, dores, sofrimentos e lembranças. Assim, eu poderia simplesmente desaparecer da face da Terra sem que ninguém sofresse por isso.
Eu queria simplesmente não faltar - não ser nem mesmo como aquele vaso que fica no canto da sala desde “pra sempre”, e a gente já nem repara a existência. Porque se um dia alguém tirar o vaso do canto, ninguém vai ter certeza do que mudou, mas todos notarão que falta algo. Nem isso... Nem um vaso eu queria ser.

Queria evaporar sem culpa e sem deixar que alguém se achasse culpado, nem por um segundo. Simplesmente não há culpados. Eu sempre odiei as cartas que os suicidas deixam, porque elas são sempre dedos pesados apontando para alguém que, muitas vezes, não sabe que errou. E justamente por isso estou escrevendo: só para dizer que vocês fizeram tudo certo. Tudo certo!

Eu lutei para sobreviver dentro de mim, mas fracassei. A vida toda olhei à minha volta e percebi o quão plena e feliz a minha vida deveria ser. Via estas pessoas vivendo praticamente para mim, em função do meu bem estar, sempre com sorrisos prontos, sempre dispostos a tudo. Eu deveria ser feliz, mas não consigo. Eu juro que lutei muito. Acho ingrato, acho injusto, me torturo, me culpo, me condeno por não conseguir sentir por mim mesmo uma mínima parte do que vocês sentem.

Eu sinto o amor de vocês. Nunca imaginem que não. Eu o sinto em cada toque e cada palavra. E sofro por não saber retribuir! Eu quase explodo por querer dar de volta alguma coisa que pudesse fazer vocês terem alguma recompensa, mas não sou capaz.
Eu e todas estas vozes que me torturam somos pessoas escuras, escusas, de alma pesada, de desejos horríveis. Quando uma delas fala mais alto, eu travo uma batalha imensa para tentar contê-la, por medo que algo de ruim aconteça a um de vocês. Elas são sombrias. Elas são cruéis e zombam de mim. Sinto-me como uma criança presa dentro do armário enquanto os amigos quebram seus brinquedos. Meu sofrimento é maior do que a própria vida e só há uma maneira de acabar com ele.

Por isso preciso pedir perdão. Preciso pedir que me esqueçam. Preciso que tenham certeza de que eu sei que vocês fizeram por mim tudo o que podiam, mas simplesmente não há mais esperanças para mim. Não há como esperar a cura, a redenção, ou um olhar divino em minha direção. Não seria justo fazê-los sofrer mais tempo. Preciso ir.

Deixo minhas economias - que são poucas - para Mamãe. Minha coleção de futebol de botão e meu De Lorean Match Box para o Pancho - rotweiler da Dona Mércia. Sei que é difícil que vocês entendam, mas em seus passeios matinais, ele fala comigo. Talvez ele seja o único a viver na mesma prisão, dentro de um corpo que não condiz com seus desejos. Tentem salvá-lo. É uma boa alma.

Não gastem dinheiro comigo. Não façam um enterro luxuoso. Não cremem meu corpo. Doem qualquer parte minha que seja necessária para alguém - menos meu coração apodrecido e meu cérebro doente. Se mesmo assim, ainda sobrar algo a ser enterrado, escrevam na minha lápide:
“Desapareceu para fugir do inferno”.

Desfaçam-me. Desmontem-me. Façam de forma a nunca mais minhas partes serem vistas juntas. Morrer é pouco para alguém como eu. Preciso ser exterminado. Me ajudem. Só assim eu terei paz.

Com todo o amor que eu não soube mostrar,

Caim Abel Angelo

10 comentários:

Alice Salles disse...

Mer!
Pobre ser esse Caim!
Não merece NEM morrer!?

Eu achei que ele fosse ainda descrever a sua morte... queria saber com ofoi que o pobre se entregou a morte!

besos

Anônimo disse...

Laice, o coitado já nasceu 3 pessoas: Caim, Abel e Angelo. Pensa na guerra que esses 3 travavam internamente. Totalmente incompatíveis!

Olha... me contaram que ele foi bacana. Não fez sujeira nem criou imagens aterrorizantes para a família. Não queria que o encontrassem pendurado por uma corda com a língua para fora, nem ensanguentado...teriam que jogar fora colchão, lençol, tapete! Péssimo!
Então ele tomou uma overdose dos remédios habituais e dormiu. Limpo e indolor.
Mas dizem que quando os remédios começaram a fazer efeito, "os outros" tentaram lutar...Sem sucesso. Ainda bem. Coitado.

Ficou mais tranquila?

:)

Flavia Melissa disse...

ahhhh, essa de que ele era 3 me pegou de jeito! putz! só quem tem nome duplo pode entender!

tadinho do caa... que descanse em paz!

Fastolf disse...

Ele não precisava da morte.
Precisava de um hospício...

Felipe "Tito" Belão disse...

o que eu achei melhor foi a alternância entre o clima bom e o clima ruim...
pq ele meio que morreu de bem, mas angustiado, certo?
também com esse nome paradoxal...

Gravata disse...

O CaimAbelAngelo quer que o esqueçam, quer ser mutilado e sair da Terra, mas ao mesmo tempo deixa um texto bem prolixo, hein?

Em termos psicanalíticos, diriam que é o chamado comportamento histérico. :D

Anônimo disse...

Hahahahaha!
completamente histérico!

Anônimo disse...

AHHHH! O GRAVATA NAO CUMPRIU AS REGRAS!!!!!

Alice Salles disse...

O gravata tá economizando!

Rodrigo Gameiro disse...

Imagino que a carta da Flávia vai ser o bicho! Porque estas cartas de suicida tem uma cara de coisas que contamos para a nossa analista!!!