10 de mai. de 2007

O Copo, o Relógio e o Telefone X


Por Rodrigo Gameiro - Desafio Caixa Preta II


Sim, era o gordo asqueroso que eu tinha visto da outra vez. Eu, Ele e Ela no mesmo cômodo. Algum silêncio. Ninguém fala. Pareceram longas horas de vazio sonoro quando o gordo interfere.

“Desculpe dona, a porta estava aberta, eu estou procurando a Sra. Janete. É aqui que ela mora?”

“Não, senhor deve estar enganado, aqui não tem ninguém com este nome”

“Mil perdões”

Eu fiquei sem reação. Como é difícil ser homem nestas horas. Eu sabia que tudo aquilo era mentira. Mas e daí?? Estava em um momento tão bom com Dana que não queria estragar. Aliás que ela dava para aquele sujeito desprezível eu já sabia. Porque ter a confirmação da boca da própria? Para sofrer mais? Não, muito obrigado!

Dana levantou-se e levou o obeso até a porta. Depois encenou uma reclamação com o porteiro pelo interfone. Entrou no quarto dizendo

“Imagine a meleca que não poderia ter acontecido? Poderia estar sozinha em casa. . . quem sabe nua, saindo do banho!!”

Dana deitou-se do meu lado e acariciava os fios do meu bigode. Eu olhava para o teto, mas estava com o foco em outro lugar. Poxa, era complicado! Eu sabia que aquilo tudo era mentira, mas era uma mentira bem intencionada! Foi para não me magoar que Dana criou tudo aquilo. Ou seja, no fundo ela gosta de mim. Mas mesmo assim, não dava para dissimular.

“Dana, não to legal, quero ir para casa. Não vou para lá faz muito tempo”

Reparei um daqueles momentos mágicos de mudança. Aquelas guinadas que acontecem depois de momentos traumáticos. A cocaína me segurava de pé há tantos dias que nem sei se hoje é terça, sábado ou quinta feira. Pressentimento de mudança! Minha respiração estava pesada e morna como a de um doente. Eu não tinha vocação para este estilo de vida. Naquele momento parecia estar sendo iluminado.

No caminho de volta para a casa tinha surtos de felicidade. Parecia estar desacorrentado do inferno astral que meu cotidiano se tornara. Enquanto caminhava para o ponto de ônibus, porque sabe se lá onde estava meu carro, aquela música do Chico Buarque se repetia constantemente dentro da cabeça.

“se o amor é como um grão, vive e morre trigo, nasce e morre pão”

Chico era sábio! O maior compositor do Brasil! Se uma pessoa me diz que não gosta de Chico Buarque, eu nem converso! Já sei que se trata de uma ignorante com mal gosto.
A renovação corria em minhas artérias. Não restavam dúvidas, o processo de reciclagem estava por começar.

Chegando nas redondezas de casa, tive a impressão de ver o gordo que Dana tinha uma coisa que eu ainda não sabia o quê. Ele estava do outro lado da rua, parecia me observar de rabo de olho, caminhava com os passos apertados. Um ônibus passou entre nós e não pude mais o localiza-lo.

Pisei em casa, estava tudo revirado. Não me lembro de ter bagunçado nada deste jeito. Mas também não me lembro de muita coisa nos últimos dias ou semanas. Enquanto tinha energias arrumei o que pude, passei uma vassoura no chão. Abri o armário de comida e vi que um supermercado era prioridade máxima. Só estavam lá minhas papinhas de bebê. Comia estes potinhos com frutas e legumes amassados com um enorme prazer. As garrafas de vodka, rum, gim e similares foram todas colocadas em um grande saco de lixo que deixei do lado da porta dos fundos. Não senti nem a vontade de dar o derradeiro gole de destilado. Os ventos estavam mudando.

Deitei em minha cama e tive uma sensação de aconchego que me lembrou a infância. Aquelas noites das férias de julho. Quando dorme-se tarde e as pernas esticadas sentem um friozinho inicial debaixo das cobertas. O geladinho vai dando espaço ao morninho protegido pelo cobertor

Foi uma noite linda, sonhei com o meu pai. Aposentaram ele da Marinha depois de uma explosão que aconteceu próxima a ele, no porão de uma corveta. Ganhou uma surdez no ouvido esquerdo. Relativamente jovem e sem saber o que fazer em casa, virou cinéfilo. Assistia filmes compulsivamente. Depois de assistir qualificava-os. Os que poderiam ser vistos e os que deveriam padecer no esquecimento. Os primeiros iam para a estante de VHS, com um carimbo na capa “INDICADO”, os segundos eram jogados no fundo da garagem de nossa casa e acabavam virando ninho de baratas e outros insetos rasteiros. Um dia minha mãe e irmã se juntaram para convencê-lo a parar de fazer isto. Ele gastava quase todo o seu soldo comprando filmes. Chegou a abrir, somente no papel, uma locadora para facilitar as aquisições dos vídeos. As duas se juntaram para apertar o velho “Porque você perde tanto tempo dizendo o que os outros podem ou não podem ver?” “Ninguém nunca pegou um filme seu para assistir” “O último sapato que comprei para Paula foi há um ano”.

Depois deste dia meu pai nunca mais assistiu um filme. Ficava sentado na varanda observando os dois dobermans que tínhamos em casa. Eles latindo para o muro, brigando entre si, comendo qualquer pedaço de galho seco que caísse das árvores enraizadas no quintal Ficava tão compenetrado nos cachorros que tinha dias que nem almoçava. Somente café da manhã e jantar.

No sonho que tive estava sentado ao lado da cadeira dele. Conversávamos muito. No quintal, não havia cachorros. Somente as árvores. Foi uma noite ótima.

Despertei deste sono maravilhoso com meu celular berrando. Abro os olhos e o aparelho estava na minha mão. Já devia estar tocando por horas e eu, em um sono tão profundo, o peguei com a mão e não atendi. Sempre faço destas coisas dormindo.

“oi Dana”

Ela estava desesperada. Contou uma história pela metade. Disse que um cara que era obsessivo por ela, um ex amigo dos seus pais que chegou a ser seu tutor. Este cara queria me matar. Que ele já tinha vasculhado a minha vida, já sabia de tudo. Ela parecia estar falando a verdade. “Foge!! Foge que eu vou te encontrar! Agora que estamos nos acertando eu não quero te perder!” No meio da conversa ela desliga o telefone.

Fiquei pensativo. Lembrei daquele gordo que comeu Dana perto da minha casa. Minha casa estava vasculhada! Nunca acreditei em coincidências.

Estava tremendo. Não sei se era medo ou abstinência do Álcool. Fui na cozinha, peguei uma papinha para comer. Encostei no balcão e vi o saco de lixo repleto de bebidas. Sem pensar duas vezes misturei vodka na comida de bebê e me alimentei.

Continua...

5 comentários:

Felipe "Tito" Belão disse...

mto bom!
papinha de nenem com vodka, música do chico, violência e pai compulsivo...
perfeito...

agora minha vez...certo?
certo, né?
to escrevendo... no gerúndio...

Alice Salles disse...

Agora é sua vez siiim!

Rodrigo, que loucura!

Agora vejo o Jan-Luc como vc! Nessa sua fotinha aí!

Beijos

Fastolf disse...

Eca!!!!!
hahahahahhahhaahhahahahahhhaha

Isso aí, tá faltando sangue.

Fastolf disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rodrigo Gameiro disse...

Alice!

Não faz isso comigo! Eu igual Jan-Luc???

Nãããããããããão!!